segunda-feira, 8 de julho de 2013

Reality is a sound, you have to...




Em Berna há um cemitério ainda bem dentro dos limites da cidade onde a cidade sepultou um destacamento de soldados franceses que morreram a defendê-la durante a primeira guerra. Cada cruz tem gravada uma indicação com o nome e com a data em que morreram. À saída da Bod está há meses um placard a tapar um prédio em construção. Esse prédio vai ser uma extensão da biblioteca central e o placard tem fotografias do que o edifício vai conter, entre elas está o retrato de Wilfred Owen. Estes rapazes, Wilfred Owen, o destacamento francês em Berna, que tiveram facas e baionetas e espingardas levaram uma vida civil antes de tudo isso, interrompida no seu curso por uma erupção doida de loucura homicida. Mas antes de tudo isto foram saloios imberbes lá na terra, apaixonaram-se pela miúda da mercearia, sonharam com as mamas da vizinha da frente, cometeram pequenos roubos, andaram descalços pelos caminhos, eram analfabetos ou estudaram em Oxford e gostavam de escrever poesia, mas nenhum deles viveu para ver os posters da Sarah Bernhardt em versão art-déco.
Durante as últimas semanas tenho andado a ouvir a gravação do Memorial, a adaptação da Ilíada da Alice Oswald. Chama-se Memorial porque a ideia básica é a de que este livro seja uma lista de nomes de soldados da guerra de Tróia (alguns fazem parte do cast da Ilíada outros não) e ela vai narrando através de símiles, de comparações quotidianas (é uma coisa que Homero também faz) o elenco das mortes na Ilíada. De um dos primeiros soldados a tombar ela fala dos quarenta black ships que ele comandava e diz depois qualquer coisa como this was thousands of years ago, now he is under the depth of black earth e a distância no tempo e o escuro criam uma impressão de uma profundidade absoluta. Mas há depois imagens que são interrupções, que abrem outro espaço, que são desapropriadas para aquilo que ela está a narrar, de repente entra em linha de conta todo um mundo doméstico, para uma imagem de um soldado que tomba ela fala às tantas de uma mãe que toda a noite trabalha a fiar o algodão, ela fala das suas poor spider hands (fio, mãos de aranha) e no último verso dessa parte diz she sooths the scales to a standstill, e nós não estamos à espera desta suavidade de algodão, balanças e ponto parado. E há momentos em que ela recua demasiado, demasiado para fora do lugar da acção, isso acontece para falar de Pátroclo, por exemplo, em que ela conta um episódio da infância dele que fica de fora da Ilíada, os versos são qualquer coisa como um som demasiado alto & women came rushing at the door, in a courtyard two children were playing, a quarrel broke, one had killed the other, that was Patroklos, nicknamed “Innocent”, he grew up behind his cousin’s high pitched voice, ou algo assim. A violência gráfica do poema nunca é estética, a relação de Alice Oswald com gregos mortos em combate há milhares de anos não tem nada de estético, ou o que a violência tem de estético acontece acidentalmente, emerge da linguagem, do ritmo e desse todo outro mundo possível que está escondido sobre os símiles que apontam para uma possibilidade de vida quotidiana. Há um ponto em que ela descreve um rapaz e diz dele a big ambitious boy, arrogant farmhand, fresh from the fields. E antes ela fala de all his crazy violence, all his crazy impatience. Iphidamas se a memória não me falha era o nome dele. Ela cria-lhes nestes detalhes toda uma vida antes e depois fecha-os em close-up mas eles pura e simplesmente já não cabem naquele momento, nós sabemos quem eles foram e o que eles foram não é o que eles são no presente narrativo. Isto cria um problema muito estranho do ponto de vista de como nos relacionamos com estas personagens e de como elas configuram a narrativa (porque a acção existe só em função delas, mas a função que elas servem é desaparecer). E no entanto, elas não existem no movimento patético (em queda) que vai de imaginarmos a vida delas antes, ou de sabermos alguma coisa dessas vidas (o soldado que se apaixona por Cassandra – she was Priam’s most beautiful, most neurotic daughter and he had no money so he offered Priam his life in order to marry her, everyone was laughing when he died, only Cassandra did not laugh), e o ponto em que morrem. Elas existem completamente antes e o presente, o tempo de acção que justifica que elas apareceram e que determina o seu curto tempo no espaço da acção, não faz qualquer sentido, é uma forma de amechania. As personagens de Alice Oswald em Memorial não cabem em Memorial. Extravasam por todos os lados com ela a tentar contê-los, há neles toda a vida que ficou sem eles. Como se um plano que ficasse vazio, uma cadeira vazia numa sala em frente a uma parede branca. Como se entre a história deles, a história que os particulariza, e aquele momento, se criasse uma falha que não permite que um momento e outro comuniquem. Esta tensão entre os eixos de tempo na sequência narrativa faz com que o livro só possa emergir como um todo a partir de uma disrupção constante, não é um poema que exista na sequência, existe numa sucessão de interrupções. E no entanto há um efeito estranho de harmonia, uma harmonia intermitente, desproporcional.
Há um verso de Anne Carson em Autobiography of Red em que ela diz “reality is a sound, you have to tune into it, not just keep yelling at it”. Memorial é um livro muito especial, um livro muito único e é provavelmente um dos grandes poemas escritos na Europa nos últimos anos.
Quando Anne Carson escreve “reality is a sound, you have to...” ela ignora a possibilidade de que às vezes, em certos lugares, a única coisa que podemos fazer é continuar a gritar à espera de que a realidade se afine a partir disso.

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