terça-feira, 11 de junho de 2013

fragmentos do Livro de Samuel

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Sentia tudo aquilo com a língua, a língua era de súbito um sentido suplementar que aglutinava todos os restantes, os quais se retraíam para dar lugar exclusivamente àquele, com o qual as coisas em redor faziam corpo, como se também elas próprias fossem um sentido, e ele respirasse através do mar, das rochas, e as visse através umas das outras, entre si, na perspectiva de cada uma, e a sua sensorialidade assim se exacerbasse, via o mar visto pelas rochas, do pétreo ponto de vista das rochas, e as rochas como se fosse o mar, do ponto de vista líquido do mar. E não só via, mas ouvia e saboreava, e não só o mar e as rochas, mas todos os objectos em redor, as árvores, as casas, o farol, tudo isso absorvido pela língua, onde o sentido da paisagem como que ia e vinha dentro dela, à semelhança das marés, acompanhado nesse vaivém por um acréscimo de intensidade, uma luz que do interior de cada um dos objectos de súbito emanava e iluminava todos os restantes como a do farol, a que o farol lhe ia extrair ao fundo da memória para aluminar cada um dos seus gestos, e Samuel, sentindo o mar apunhalado, a ferida que nele a roda abria, caminhava ao longo das paredes, paredes únicas, ali, paredes cuja singularidade extravasava como tinta que delas ressumasse, ou água, água onde os próprios barcos se tivessem afundado, água de incêndio.

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A língua era excitada pelo que ouvia, a língua ouvia, dessacralizava velozmente o que a excitava, fazia de janela, uma janela, a daquele quarto onde ele agora residia. A língua desligava-os e voltava-os a ligar, como que as recozia, sentia-se-lhes o sabor a ascender no paladar, um sabor quase visão, que lhe ascendia aos olhos, à chama que lhes corre ao rés do espírito.


Luís Miguel Nava. O Livro de Samuel (fragmentos). in relâmpago nº16 4|2005.

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