Às vezes penso que nunca há-de ser mais do que estas notas aceleradas, desconexas. Post-its que talvez venham a compor a minha cara, se coleccionados todos, pacientemente. Mas só à superfície é que me posso dar ao luxo de coleccionar coisas. Na verdade, talvez venha a ficar comigo mais tempo o adaptador de corrente que comprei no aeroporto em Lisboa e que deixou de funcionar (e agora está na estante ao pé da plaquinha que o vizinho me trouxe de Lloret de Mar, thanx Horatio) do que tudo aquilo que escrevo como notas diárias. A ideia de que um rasto de palavras serve para ser conservado ou para conservar é um pensamento para mim abjecto, quase irrespirável. Tudo sobre este texto é afinal sobre ser livre, sobre não guardar, esse é o único diário que funciona, porque não é diacrónico e é disfuncional (como de resto as coisas que nele se tenta sem sorte registar, mas uma vez perdendo as pretensões à organização percebe-se que a coisa é mais fácil de manter). Ao contrário daquelas primeiras páginas de um diário que mantive quando aqui cheguei e que depois de as ter rasgado fui espalhando durante dias por diferentes caixotes de lixo por toda a cidade. Naquelas páginas não havia nada de secreto, nada que valesse a pena ser reencontrado (estava na verdade a tentar não pensar) e nem era isso o que me levou a destruí-lo, mas antes duas coisas, uma da ordem daquela história que se conta sobre Simónides, que no meio de um naufrágio, toda a gente para cá a e para lá, os marinheiros, os passageiros, desesperados a tentarem salvar os seus pertencentes e Simónides parado ao pé do mastro, então Simónides, não te mexes, e ele: que tudo o que lhe pertencia estava com ele, estava nele, aquilo que confio por hábito ao papel pertence primeiro à minha memória, à grande pressão dos meus pensamentos, de certa forma passa muito tempo comigo, mas sei que estas coisas se perdem, há dias de que não me recordo, dias que não me dizem nada, mas escrever força o padrão a aparecer, força a escavar, torna-se uma maneira de viver (não uma lente sobre que ver a vida). Nesse sentido suspeito que só falsamente sou um escritor, ou de outro modo, que só o sou daquela maneira em que o são aquele tipo de poetas que estão primeiro comprometidos com o que podem guardar em si para mais tarde dizer, porque o carregaram tanto tempo que já não se podem livrar disso ou porque sabem que é uma coisa com um instante só e é só aquele e por isso é preciso escrevê-lo. Escrever é uma maneira de ser, não há uma distinção entre as duas coisas, e o ser pertence também à fala, cujo primeiro motivo seja talvez conversa, pertence ao que dizemos aos outros (uma parte de nós é sempre interpretação, o território alheio, um espaço que depois para nós é inconsciente, um espaço onde existimos não existindo para nós próprios, mas sendo o que somos no ponto de vista de um outro, tudo o que somos) e pertence ao nosso discurso interior, a essa torrente em que nos fechamos, em que pensamos ser nós próprios e às vezes até mesmo estar a salvo (impertinência tolinha). Mas escrever não é criar o outro (talvez só uma maneira de lá chegar e até existem outras, igualmente interessantes) e não há para mim uma distinção propriamente entre escrever e falar, entre escrever e gritar ou murmurar, ou se há é artificial, a força do que temos de dizer não depende da forma escrita ou falada. E a mim convém-me uma ideia de sopro (que o haja no que escrevo enquanto o pio não for cortado), essa ideia de que as palavras são em primeiro lugar coisas orgânicas, vivas, com uma vida que nos escapa (é também por isso que não posso aceitar que haja nos aedos gregos qualquer coisa de subdesenvolvido, de primitivo, só porque deles sabemos pouco, porque nunca escreveram nada, o meu ofício de escritor não é o que a minha mão escreve, é o meu ofício, tudo o que sou mesmo para lá do acto de escrever, mesmo que para aí convirja, que seja essa a sua expressão, mas o escritor que sou é o que é sempre e não só o que se senta para escrever, tem estado comigo constantemente, todos estes anos, é uma coisa mais fluida e mais orgânica do que um hábito, tudo o que faço e tudo o que sou converge para esse acto, mas esse acto é expressão, é menos mecânico do que só a mão que assina o papel, a mão que assina o papel não chega, é preciso o corpo todo e mesmo às vezes o corpo todo não chega).
O outro motivo porque me agrada a ideia de destruir notas diárias não tem nada que ver com uma ideia de apagar o tempo, de recomeçar outra vez, não é uma coisa de Penélope. Antes a ideia – ou assim gosto de pensar, que há nisto alguma razão e ela é ética, mas desconfio que pode muito bem não haver nenhuma – de que não devemos ser avaros com as coisas que vivemos, que quando o barco se afundar (e afunda-se sempre, eu vivo com esta impressão de tragédia eminente, desastre a intervalos, falhanço sempre em potência, decepção constante) só assim saberemos o que verdadeiramente carregámos todo o tempo connosco, quais os restos e que restos de dia ao certo, quem está neste filme. E tudo isto acaba por encontrar, por criar a sua maneira de chegar ao texto, ao instante do texto, mas em alguns textos mais do que noutros e isto é uma observação verdadeira. E se não há grande maneira de distinguir o afogado que vai ao fundo distraído e ocupado a reunir os seus pertences e o que vai a direito sem nada nos bolsos, pois que o resultado é sempre o mesmo, a verdade (dura e cruel para dar azo e uso a um gosto por adjectivação perfeitamente inútil, a verdade não é outra coisa, enquanto mentir é o que quisermos) é que o resultado é sempre o mesmo de qualquer maneira. A diferença vive nestes detalhes, nestas singularidades. E esse momento, podemos projectá-lo, existe, em que vemos as coisas mais agudamente, mais claramente, e são parcas e claras e talvez nos tenham acompanhado o tempo todo. Não manter um diário durante a maior parte do tempo, uma decisão para mim irregular, notas diárias, é a minha maneira de reduzir o ruído, como a criança que se senta à janela e tem o rádio no máximo e roda o botão à espera de ouvir minimamente, desconsiderado, incontrolável por baixo, o chilrear do pássaro, essa coisa desajeitada que a esforço atravessou os lugares e o inverno e enganou predadores para alardear um qualquer trinado mais ou menos vulgar, batido e repetido por outros, e monótono. Mas o que esse pássaro tem é o que ele é e está com ele e trabalhou nele até ao ponto do canto, o resto é pouco mais que contingente. E no entanto, isto não são coisas de concisão, estas coisas que trazemos connosco e que notas diárias apenas tornam mais evidentemente e pela mecânica de uma prática retórica talvez redundante. Não são coisas que estejam bem. Há nestas coisas uma quase fúria, uma espécie de potência que em dois ou três traços ténues chegam para ser o alicerce do que sou. Esses são também lugares magoados que sabemos que temos de proteger, mesmo contra a tentação de spend the facts of our lives like small change on strangers. Se nada ficar escrito quais sãos os factos da nossa vida (talvez seja também para isso que hajam os arquivos, os registos civis, as contabilidades de impostos, os ficheiros clínicos dos hospitais)? Não manter um diário porque também não sei se existem tais coisas como os factos da nossa vida. Ou manter um diário em que tudo seja mentira. Há traços estáveis, uma identidade, o lugar de onde viemos, para onde vamos, que trabalho temos, mas todas essas coisas continuam a avançar no tempo connosco, detioram-se, recompõem-se, trabalham connosco, contra nós, contra a nossa vontade, abandonam-nos, dão-nos uma alegria exultante e são a cara da nossa decepção, do mais amargo, um medo de falhar, uma inveja triste. Coleccioná-las é um inventário para descer. Expõe-nos à tentação, já em si natural, de somar e subtrair, de contar, de achar que podemos terminar numa ponta e acabar na outra. É possível, mas isso é chato como o raio. Electra acontece só naquela moldura de tempo, emerge só em meia dúzia de lugares em umas quantas frases, de resto pouco sabemos dela, exceptuando que adivinhamos que há também para ela a vida quotidiana, os lugares comuns, o prazer de café bebido em copos de papel, comer cerelac ao almoço se sozinha em casa, beber whisky da garrafa da mãe quando esta não estava, ou a cobiça pelo vestido azul na montra da rua principal. E todas estas coisas interessam, e é também desta maneira que me encontro contigo ou que me preparo para o que amo, para o que tenho a perder, na contingência. Escrever deve trazer afinal isso ao de cima, tudo o que escrevemos antes disso ajuda mas pode arder, é o ofício triste do retórico, ainda que conceda que para outros isto funcione, mas este texto na memória, esta música nas suas variações é da ordem dos textos não que se leem mas que acontecem, é aí que o diário se torna organicamente a memória e não já só o diário (v. Pavese) por isso é possível que as notas diárias sejam precisas, mas posso esbanjá-las porque não me pertencem, porque não me interessa forçá-las sobre os outros, ou talvez por isso me pertençam demasiado mas posso deixá-las ir porque por as ter escrito sei o que nelas há de constante e posso dá-las, destruí-las, afastá-las que não as posso perder.
Sei que há por baixo disto e no fundo mais escuro a rapariga com o farol da bicicleta partido os cortes nos joelhos a que aprendeu a crueldade que há nos outros e agora pode proteger-se, também a que sabe que não é sempre assim e pode virar a palma da mão aberta, que teme que lhe descubram os cadernos, que prefere deixar tudo acontecer até que tudo o que me é exterior me aconteça e essas são coisas poucas, é isso que as notas de cada dia preparam. Escrever não era sobre erguer um muro é ainda sobre o melhor método para o destruir. Calculando o peso disto Celan escreveu Was du aus Leichtem wobst/ trag ich dem Stein zu Ehren [Aquilo que tu teceste a partir de uma coisa leve/ eu uso em honra da pedra].
:(
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ResponderEliminar( Já os meus erros são todos insanáveis : nenhuma redundância é capaz de negar esta conclusão. )