sábado, 9 de março de 2013

Subir

Subir a correr as escadas até ao último andar da biblioteca em ritmo de perseguição (sed ninguém no encalço, bibliotecas sempre me inspiraram movimentos sneaky, uma vontade de murmurar tudo, um tom conspiracional). Só no topo, olhando para as escadas de incêndio visíveis pelas janelas é que percebo que o edifício é circular porque foi planeado como uma torre. Estou aqui há quase um ano e só agora vejo isso. Aquilo que numa biblioteca pode ser um certo ambiente monástico pode também ser entendido como atmosfera prisional (ia escrever "vaga" antes de "atmosfera" mas refriei-me a tempo, não é vaga coisa nenhuma). A definição é útil porque se aplica a outros contextos, a outros ambientes. O acto de subir testa outra coisa, a ideia de que para ler e para escrever não basta resistência (sublinhar resistência) mental é também preciso resistência física (li isto algures esta semana, não sei onde). Com longa resistência se preparou para resistir e talvez que não o cumpra. Talvez que venha a ceder como madeira seca. Ou talvez que o cumpra cinicamente. Com um jeito de pés pisando vidro moído e rosto impassível. Uma imagem sobre resistência. Se bem que aqui o evidente seria mesmo evocar uma educação pela pedra.
Alguns dos livros aqui estão presos em closed stack, mas a pedido podem passear pela cidade, serem-te confiados por um breve período de algumas horas, de dias até, mas a maior parte deles não pode ser levada contigo para casa. Podem ficar por alguns dias na reading room, reservados em teu nome, mas não podem sair. Vêm numa carrinha azul. Há um gabinete à entrada do edifício. Mostras a um dos bibliotecários o teu cartão. Ela procura os livros que pediste na noite anterior ao closed stack. Os teus livros viajam de noite. Encontram-se contigo de manhã. Andas a ler sobre _____. After virtue. Fiction and the Figures of Life. Singing the dead: a model for epic evolution. Guilt by descent: moral inheritance and decision making in Greek Tragedy. Os teus livros viajam de noite. A sua viagem de noite aos poucos é a tua cara nos autocarros em que de noite, sempre de noite, fazes a viagem de volta. Apropriação. Uma coisa que vais escavando em ti. Frase a frase. Esperas que o significado, a soma de todas as leituras, faça um padrão e do padrão surja um sentido. Mas no processo não aprendes. Não há nada em ti que possa já cair na tentação de ser educado. Ou nada que sequer a queira. Esta foi a última coisa que aprendeste. Mas tens saudades desse tempo. Bibes e sangue a correr do nariz no princípio da primavera, cadeiras baixas, pacotes de leite com chocolate e maçãs ao fim da tarde. Esse mundo desapareceu e aquilo que dele querias de volta nunca existiu. Ou existiu apenas na medida em que a tua visão forçou uma mentira fundacional. Mito insignificante da origem. A identidade é outra coisa. É assim com a maior parte das pessoas. Estes livros que estavam presos cumprem um certo percurso na cidade a uma hora clandestina. Dão entrada na biblioteca às onze da manhã para que os possas levantar depois de almoço. Mas às vezes às dez para as dez já aqui estás porque da janela consegues ver chegar a carrinha. Grandes caixas de plástico azul ficam na rua estreita apenas durante alguns momentos. São deixadas sem vigilância. Left unattended. Como bagagens num aeroporto. Caiu sobre elas a neve de Fevereiro, cai sobre elas a abundante chuva de Março. Aqui o tempo é monótono de variadas maneiras. Homens de capuz carregam-nas para dentro. Qualquer coisa de fúnebre nisto. As academias fecharam os livros. Fecharam os livros para (em versão em que se insinue a mais evidente suspeita, troque-se a "para" por "a pretexto de") os guardar. Do not leave your luggage unattended. De todos os livros nas caixas, terás de separar, só poderás amar alguns. Coabitar com alguns. Mas muitos destes são aqueles livros que são já completamente prisioneiros, que nunca foram livres. (De quantas coisas são reféns as coisas que escrevemos?) Não sabemos se é nosso dever tratá-los com pena ou suspeita, ou ambas. Fora desta cidade, na tua cidade, deixaste para trás uma república de livros livres. Livros que tu fizeste. Livros que fizeste com amigos, livros feitos por amigos. Livros feitos por pequenas casas. Livros impressos ilegalmente. Livros sem um código que o teu cartão com código de barras pudesse redimir por umas horas de uma gaiola onde os fechassem. Livros perigosos, completamente livres, completamente livros. Livros para a felicidade clandestina como em Clarice Lispector. Que podem produzir o efeito físico de subir três andares de um golpe. Há aqui alguns livros assim. Mas estão presos. O teu encontro com eles é premeditado. Das 9 às 21.50 durante os dias de semana. Seguem uma regra para serem lidos. Tu mesma os andas a ler de um ponto de vista da convenção. Não, isto não é verdade. Lembras-te do_____ a semana passada? Sim, mas isso foi inesperado. Nenhum outro livro fala dele. Ele estava até meio escondido na estante (não estava nada, estás a exagerar). As torres altas, ocres, mais altas do que a cúpula deste edifício. Os pequenos quintais mal-tratados. O chá com leite às cinco da tarde. O mau hálito do chá com leite às cinco e meia. Padres anglicanos de batina branca e preta, passando na gala do empedrado, enquadrados pelas linhas amarelas das ciclovias. Cheiro de laranja nas mãos (escapuliste-te para comer, trá-las dentro de um saco de plástico na mochila, são inesgotáveis, nunca mais acabam, o saco é sem fundo, o som de laranja em árabe soa ao nome da nacionalidade com que te identificas). 

O tempo do voo das pernas tem uma relação proporcional directa com a escassez crescente de ar nos pulmões: os únicos livros que interessam são esses. 

Isto é óbvio não devia ser preciso dizê-lo e dizê-lo não exime da possibilidade de incorrer em erro, em violência, injustiça cega e colaborante, da hipótese de clandestinidade, a mão que isto escreve ou que com isto se possa identificar. A mesma que na manhã se estende para os livros que vieram do arquivo. Aquela que deixando a torre e que saindo para a noite que cai (Apolo chegou como chega a noite, recordou-me Miguel não sei quando ou talvez Joana e quando o fui reler, eles eram já parte desse verso, reunidos por um pequeno instante, esses amigos chegavam-me como Apolo que chega como chega a noite, todas as noites Apolo sob a forma da noite, eis o quão perigoso isto é) cantarola no escuro, militantemente, quase militarmente, aquela coisa que Caetano canta em espanhol com insinuante sotaque de português do Brasil: "como és mejor el verso aquél que no podemos recordar".

2 comentários:

  1. Muito bom , outra vez . Fez me lembrar o Ernesto Sabato ( O escritor e os seus fantasmas , já o leste ? ) : escrever bem , isso sim é fundamental .

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  2. Não li. Hit least it goes. Obrigada pela nota, João.

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