domingo, 7 de abril de 2013

I Companhia, 1

Um homem tão frágil quanto uma flor. Profissão: tudo o que convier no momento, quando precisa de conversar. Coxeia de mesa em mesa, aproxima-se dos outros com cuidado, chupa cego pedacinhos de nada que lhe atiram, vai pedinchando a esmola da atenção, com o olhar fere o sorriso ainda plano das crianças.

a correria ruidosa em volta do seu lugar – amarra-lhe o corpo, o disparo na respiração limpa de uma das crianças, marca-a com o dedo, a sedução em silêncio –

retomam o riso, a respiração ofegante, a correria. Procura nos bolsos. Uma sede que lhe torce a língua, come-lhe o estômago, fede à distância, dá-lhe náuseas.
Regresso ao escuro.

*

Tão frágil quanto uma flor. Como pegar nela, espremer o seu nervo escanzelado de vida, golpe azul que se deita espesso até ao fundo pela palma da mão –
dedos caridosos salpicam o derrame lento sobre o focinho do artista, dão-lhe a provar o cúmulo negro das unhas – dá voltas sobre a sua sombra, não consegue lamber – nenhuma palavra, nenhum fôlego, gane alto sem vergonha – de nada lhe servirá a vontade de falar

*

Frágil como uma flor. Mudá-la de sítio –
passa inclinado, despercebido, vaidoso nas suas pétalas rasgadas, a boca espera numa vontade de chuva, não se ouve – entra o sol, extingue o seu círculo branco de pétalas, desce certeiro até às raízes.
– vê, estão podres.


Frederico Pedreira
O Artista Está Sozinho
Lisboa, 2013, Edição de Autor

À venda nas livrarias Letra Livre, Paralelo W e FNAC.

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