segunda-feira, 23 de abril de 2012

B.

Mas eu acredito na escrita. Em mais nada, unicamente na escrita. O homem vive como um verme, mas escreve como os deuses. Antigamente, conheciam este segredo; hoje, está esquecido: o mundo compõe-se de pedaços estilhaçados, é desconexo, é um caos escuro, que tão-somente pela escrita se mantém à tona. Se tens alguma ideia acerca do mundo, se ainda não esqueceste tudo o que te aconteceu, facto é que, pelo menos, tens o teu mundo: tudo isso foi para ti criado pela escrita e continua a criá-lo, incessantemente, é o fio da aranha que mantém coesa a nossa vida, é o logos. Há uma antiga palavra bíblica: o escriba. Caiu há muito em desuso. O escriba é diverso do talentoso, o escriba é diverso do bom escritor. Não é filósofo, não é linguista e não é estilista. Mesmo gaguejando, mesmo se não o compreendes logo: reconheces de imediato o escriba. B. era um escriba. 

Imre Kertész, Aniquilação, Ulisseia (trad. Ernesto Rodrigues), 2003.

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