sábado, 13 de outubro de 2012

 As relações entre arte e moral são extraordinariamente simples, pois tanto os defensores de que não há qualquer relação, como os seus opositores, têm razão. Objectivamente, não existe qualquer razão entre arte e moralidade, pela simples razão de que arte é arte e moralidade é moralidade, e pela mesma razão por que não existe qualquer relação entre a verdade e a moralidade. No entanto, a moralidade, sendo o esforço para elevar a vida humana, para lhe dar um valor humano, tem consequentemente relações com toda a vida humana. E a vida humana inclui a arte e a verdade.
  As mesmas relações existem entre beleza e verdade. Eu posso, se estiver ao meu alcance, basear um poema esplêndido no pressuposto de que o Sol se move em redor da Terra; nenhuma injúria a Copérnico afectará necessariamente a cadência do meu verso. Todavia, na mesma medida em que utilizo um pressuposto manifestamente errado, assim farei com que o meu poema perca o contacto com a vida – ou seja, ainda que não perca o contacto com a arte, perdê-lo-á com aquilo a que a arte pertence.  
  A minha mentira não prejudicará o efeito artístico do meu poema, mas arruinará o efeito de elevação de que o efeito artístico é apenas um aspecto. É que – e aqui tocamos no chão – elevar é a finalidade da arte mais sublime, e o seu fim é, por conseguinte, idêntico ao da moral. O meu poema pode elevar como um poema; deixará de elevar como produto vivente.

Fernando Pessoa, Heróstrato e a busca da imortalidade, Manuela Rocha (trad.) Assírio & Alvim, 2000.

Sem comentários:

Enviar um comentário