segunda-feira, 8 de outubro de 2012

o que fica

Um controlo de segurança num aeroporto. Há que esvaziar o conteúdo da mochila: o computador, dois livros, um caderno, o iPod, três ou quatro canetas, três lápis de números diferentes, um porta-moedas, um bloco de notas verde, as chaves de casa. A vida secreta da mochila exposta. E depois veio o take off your shoes sem o please antes ou depois. E de repente no meio da confusão de gente que passava de um lado para o outro, detectores de metais em bip, guardas armados de metralhadora, o computador retido para testarem não sei o quê, espere cinco minutos, etc., etc., e dez minutos depois will you give me back my computer, like now, like right now?, já sem o please também, porque, de repente, a um ambiente cada vez mais hostil outra resposta possível é a hostilidade, o objecto privado sob investigação de estranhos, e, ao mesmo tempo, o anonimato disto, é tudo estranho, é tudo aleatório, não sou eu, não é o meu computador especificamente, é a ameaça anónima, a ameaça anónima aleatória e potencial, provável, de outra coisa qualquer que pode ou pode não vir, e no meio disto tudo, saído não sei de onde, não sei porquê, aquele verso de Elytis no início de O Monograma. Um mundo tão longe disto, de repente, a privacidade de um pequeno quarto, este quarto de onde venho e a que regresso, um verso a meio do caos, um verso como identidade, há-de ser sempre assim, a cabeça cheia de versos. De repente o silêncio desse verso, qualquer coisa nele de um lugar familiar. O silêncio a meio do caos, a coisa de que não podes ser outstripped, aquilo que não é inspeccionável, a nossa vida interna. Esta é a função do texto enquanto parte da tua história pessoal. A sua função vital, cardíaca. Não existe outra. Por isso os pequenos livros de poemas, os cadernos, o computador, as canetas. Porque o sentido, a pequena ternura de um verso a meio da noite, num lugar hostil, de repente é por vezes toda a civilização que nos resta.

3 comentários:

  1. A insolência desses controles faz de nós mesmos o nosso último reduto, como se não houvesse mundo lá fora. Adaptado, o texto dava um conto excelente. É sempre um prazer lê-la.

    ResponderEliminar
  2. Também os detesto, Nuno, e o pior é pensar que são inevitavelmente necessários. Muito obrigada pela nota.

    ResponderEliminar
  3. Lembro-me de ter estado em Tripoli no princípio do ano , senti a mesma violência . Será como citas «não se domesticam estes monstros» . Mas sirva ao menos a alguns a poesia como o anjo da guarda .

    :-)

    ResponderEliminar