Parece ser somente à luz da doutrina
cristã da Encarnação do Filho de Deus que a filosofia pode
conceber-se como uma leitura dos sinais dos tempos, sem se reduzir a
um puro registo passivo do curso do tempo. “À luz da encarnação”
constitui assim de novo uma expressão que tenta apreender uma
relação cuja dimensão problemática não resolvida constitui o
próprio núcleo da experiência da eventualidade: a Encarnação de
Deus de que aqui se trata não é só uma maneira de exprimir de
maneira mítica aquilo que a filosofia acaba por descobrir como
resultado de uma investigação racional. A Encarnação também não
é a verdade última dos enunciados filosóficos, desmistificada e
reconduzida ao seu sentido próprio. Como já comprovámos de
diferentes maneiras nos desenvolvimentos anteriores, esta relação
problemática entre filosofia e Revelação religiosa é o próprio
sentido da Encarnação. Por outras palavras, Deus incarna, revela-se
antes de mais na anunciação bíblica que, por fim, “dá lugar”
ao pensamento pós-metafísico da eventualidade do ser. É apenas na
medida em que redescobre a sua própria proveniência
neotestamentária que este pensamento pós-metafísico pode
representar-se como um pensamento da eventualidade do ser, não se
reduzindo à pura aceitação do existente, ao puro relativismo
histórico e cultural. Noutros termos, é a Encarnação que confere
à história o sentido de uma revelação redentora e não só o de
uma acumulação confusa de acontecimentos que perturbam o carácter
puramente estrutural do verdadeiro ser. Que a história tenha também,
ou justamente, um sentido redentor (ou em linguagem filosófica,
emancipador), sendo ao mesmo tempo a história de anunciações e de
respostas, de interpretações e não de “descobertas” ou de
presenças “verdadeiras” que se impõem, é algo que só se torna
pensável à luz da doutrina da Encarnação.
Gianni Vattimo, O rasto do
rasto in A Religião, Miguel
Serras Pereira (trad.), Relógio D'Água, 1997.
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