segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Parece ser somente à luz da doutrina cristã da Encarnação do Filho de Deus que a filosofia pode conceber-se como uma leitura dos sinais dos tempos, sem se reduzir a um puro registo passivo do curso do tempo. “À luz da encarnação” constitui assim de novo uma expressão que tenta apreender uma relação cuja dimensão problemática não resolvida constitui o próprio núcleo da experiência da eventualidade: a Encarnação de Deus de que aqui se trata não é só uma maneira de exprimir de maneira mítica aquilo que a filosofia acaba por descobrir como resultado de uma investigação racional. A Encarnação também não é a verdade última dos enunciados filosóficos, desmistificada e reconduzida ao seu sentido próprio. Como já comprovámos de diferentes maneiras nos desenvolvimentos anteriores, esta relação problemática entre filosofia e Revelação religiosa é o próprio sentido da Encarnação. Por outras palavras, Deus incarna, revela-se antes de mais na anunciação bíblica que, por fim, “dá lugar” ao pensamento pós-metafísico da eventualidade do ser. É apenas na medida em que redescobre a sua própria proveniência neotestamentária que este pensamento pós-metafísico pode representar-se como um pensamento da eventualidade do ser, não se reduzindo à pura aceitação do existente, ao puro relativismo histórico e cultural. Noutros termos, é a Encarnação que confere à história o sentido de uma revelação redentora e não só o de uma acumulação confusa de acontecimentos que perturbam o carácter puramente estrutural do verdadeiro ser. Que a história tenha também, ou justamente, um sentido redentor (ou em linguagem filosófica, emancipador), sendo ao mesmo tempo a história de anunciações e de respostas, de interpretações e não de “descobertas” ou de presenças “verdadeiras” que se impõem, é algo que só se torna pensável à luz da doutrina da Encarnação.

Gianni Vattimo, O rasto do rasto in A Religião, Miguel Serras Pereira (trad.), Relógio D'Água, 1997.

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