terça-feira, 7 de agosto de 2012

manuscrito de Harry Haller (só para loucos)

     O dia passara igual a todos os outros, eu assassinara-o docemente naquele meu jeito de viver primitivo e envergonhado; trabalhara umas horas, remexera uns livros velhos, tivera por duas horas dores iguais às que as pessoas idosas costumam ter, tomara uma cápsula e alegrara-me de ver que as dores iam cedendo; mergulhara num banho escaldante e absorvera aquele calor benfazejo, recebera o correio três vezes e percorrera com os olhos todas aquelas dispensáveis cartas e impressos; fizera os meus exercícios respiratórios, mas os exercícios mentais, esses, pusera-os por ora de lado, a bem da preguiça; saíra a passear uma hora e descobrira, desenhadas no céu, amostras de nuvens penugentas, belas, delicadas, preciosas. Era realmente lindo, como era também agradável folhear os livros velhos e alongar-me no banho quente; mas, tudo somado, não fora propriamente um dia delicioso, radioso, de felicidade e alegria, fora sim um daqueles dias que já há muito tempo deveriam ser para mim normais e corriqueiros: dias moderadamente agradáveis, francamente suportáveis, mornos, e medianos, de um senhor a entrar na idade, insatisfeito, dias em padecimentos e sem preocupações de maior, sem aflições propriamente ditas, sem desespero, dias em que até a questão de saber se não terá chegado a altura de seguir o exemplo de Adalbert Stifter e ter um acidente ao fazer a barba, se pondera sem emoção nem receios, pragmática e tranquilamente. 
     Quem experimentou já os outros, os maus dias das crises de gota ou daquelas terríveis enxaquecas que se enfaixam solidamente por trás do globo ocular e demoniacamente enfeitiçam, de alegria para tortura, toda a actividade da vista e do ouvido; ou aqueles dias de morte na alma, aqueles amaldiçoados dias de desespero e vazio interior em que no seio da terra devastada e depauperada pelas grandes companhias, o mundo dos homens e a chamada civilização, com o seu enganoso e ordinário fulgor de metal de feira, a cada passo nos lançam em rosto um meio sorriso, qual vomitivo, concentrado e impelido ao cúmulo do abominável no nosso próprio eu adoecido - quem experimentou esses dias infernais dá-se por bem satisfeito perante dias normais como o de hoje, dias assim-assim; chega-se agradecido ao calor do fogão, agradecido se constata, lendo o matutino, que hoje também não rebentou nenhuma guerra, não se instituiu qualquer nova ditadura, não se descobriu qualquer sujeira especialmente abjectiva na política ou nos negócios; agradecido afina as cordas da sua lira enferrujada para um salmo de graças moderado, mediocremente jovial, quase jubiloso, com o qual irá enfadar o seu deus da satisfação, deus do assim-assim, doce, tranquilo, algo atordoado de brometo; e na morna e densa atmosfera desse enfado satisfeito, dessa ausência de dor que tão grande reconhecimento nos merece, um outro, o deus assim-assim mornamente cabeceando, e o homem assim-assim, levemente grisalho, cantando um salmo abafado, assemelham-se como gémeos. 

Herman Hesse, O Lobo das Estepes, Círculo de Leitores, 1990.

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