A
primeira tentação que a gente tem é a de dizer: “Ainda bem que não lhe deram o
passaporte.” Não. É evidente que não está certo e que o Alexandre tinha todo o
direito de ter ido para Paris e de ter ido curtir com a Nora Mitrani, e o poema
e a literatura que tivessem paciência… Porque ele escreveria outra coisa. Ou
que não escrevesse, a vida é que é a grande obra de arte… E se a história com a
Nora Mitrani corresse mal, paciência também… A grande obra de arte é a nossa
vida. Não há outra.
Alexandre
O’Neill – Uma Biografia Literária.
Maria Antónia Oliveira. Dom Quixote, 2005
UM ADEUS
PORTUGUÊS
Nos teus
olhos altamente perigosos
vigora ainda
o mais rigoroso amor
a luz dos
ombros pura e a sombra
duma
angústia já purificada
Não tu não
podias ficar presa comigo
à roda em
que apodreço
apodrecemos
a esta pata
ensanguentada que vacila
quase medita
e avança
mugindo pelo túnel
de uma velha
dor
Não podias
ficar nesta cadeira
onde passo o
dia burocrático
o dia-a-dia
da miséria
que sobe aos
olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal
soletrado
à estupidez
ao desespero sem boca
ao medo
perfilado
à alegria
sonâmbula à vírgula maníaca
do modo
funcionário de viver
Não podias
ficar nesta casa comigo
em trânsito
mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia
que não vem da promessa
puríssima da
madrugada
mas da
miséria de uma noite gerada
por um dia
igual
Não podias
ficar presa comigo
à pequena
dor que cada um de nós
traz
docemente pela mão
a esta
pequena dor à portuguesa
tão mansa
quase vegetal
Mas tu não
mereces esta cidade não mereces
esta roda de
náusea em que giramos
até à
idiotia
esta pequena
morte
e o seu
minucioso e porco ritual
esta nossa
razão absurda de ser
Não tu és da
cidade aventureira
da cidade
onde o amor encontra as suas ruas
e o
cemitério ardente
da sua morte
tu és da
cidade onde vives por um fio
de puro
acaso
onde morres
ou vives não de asfixia
mas às mãos
de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda
falsa do bem e do mal
Nesta curva
tão terna e lancinante
que vai ser
que já é o teu desaparecimento
digo-te
adeus
e como um
adolescente
tropeço de
ternura
por ti
Alexandre O'Neill, No Reino da Dinamarca (1958).
este poema é sempre tão.
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