quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Rimbaud

As noites, as pontes de comboio, a má estrela,
Os seus temíveis companheiros não as conheciam;
Mas nessa criança a mentira do retórico
Queimava como uma fornalha: o frio fizera um poeta.

As bebidas que o seu amigo tíbio e lírico
Lhe comprava, perturbavam-lhe os cinco sentidos,
Terminando com todo o nonsense corriqueiro;
Até se alhear dos pecados e da lira.

Os versos eram uma doença específica do ouvido;
A integridade era de menos; parecia
O inferno da infância: devia tentar de novo.

Agora, galopando pela África, ele sonhava
Um novo eu, um filho, um engenheiro,
Cuja verdade mentirosos aceitassem.

W. H. Auden, O Massacre dos Inocentes (Uma Antologia), José Alberto Oliveira (trad.), Assírio & Alvim, 1994

A propósito de Verlaine acaba-se sempre por falar de Rimbaud, aqui há dias falou-se de Verlaine e lembrei-me deste poema.
Tenho duas traduções de Rimbaud na estante, a de Cesariny de Iluminações e Uma Cerveja no Inferno, tradução do título Une Saison en Enfer e O Rapaz Raro em tradução de Maria Gariela Llansol.
Não sei porquê embirro com as traduções de MGL (todas as que até agora me passaram pelas mãos sem excepção). Enquanto a tradução-versão-interpretação de Cesariny me fez adorar Rimbaud, é um exemplo de um trabalho sobre determinado corpus de texto bem feito e a edição bilingue permite-nos ver onde começa Cesariny e acaba Rimbaud, a de MGL deixou-me a impressão de estar perante uma tradução demasiado presa à língua de partida que por vezes se esquecia da língua de chegada (este pode ser um reparo injusto), e isso também não é bom para o texto traduzido.
Creio que a tradução de Cesariny demonstra que um tradutor pode ser interpretativo sem se esquecer do texto que está a traduzir e, apesar dos desvios, creio que Cesariny nunca se esquece do seu papel de tradutor. O leitor desta tradução assume o acordo tácito (logo ao olhar para o título) de jogar pelas regras do tradutor e a experiência de leitura ganha com isso. Cesariny não tem pretensões a verter literalmente o texto (a própria tradução do título é um trabalho de interpretação) mas tudo isto converge para termos uma excelente versão de Iluminações e Uma Cerveja no Inferno. Com a tradução de MGL sucede um pouco o inverso, um tradutor demasiado preocupado com a língua de partida, o que é legítimo mas também retira «movimento» ao texto em português, olhamos para a edição bilingue ao lado e na tradução temos apenas um Rimbaud mais desengraçado. A tradução perdeu coisas porque o tradutor foi bastante fiel mas esqueceu-se do espírito do texto. Isto não é necessariamente mau, mas o trabalho de Cesariny é melhor, também, trata-se de Cesariny. Neste campo, Herberto Helder fez algo semelhante com os seus Poemas Mudados Para... mas aí já nem estamos no campo da tradução.
De qualquer forma, no caso de ambas as traduções, as edições feitas são bilingues, e a beleza dos textos de Rimbaud resiste (ou é mantida) nas traduções.

2 comentários:

  1. Abomino as traduções de Llansol... Mas nunca o disse com medo de ser enxovalhado pela púrria dos cultores da senhora (que tardariam a compreender a diferença entre a importância da sua voz e a horripilância do seu trabalho de tradução).

    Experiência traumatizante, por exemplo: "Les Fleurs du Mal", de Baudelaire. A edição é bilingue e mesmo assim consegue a proeza de fazer o leitor perder-se numa comparação linha a linha. Fiquei com a impressão que havia três vozes naquele trabalho: a de Baudelaire, no original, a de Llansol, ao lado, e a do leitor, constantemente interrogando-se "Mas de onde é ela foi desencantar isto?"

    É o apego excessivo ao original, como dizes, bem como a insistência de Llansol em verter para esse rígido molde os contornos da sua própria voz e ego, que gera uma experiência de tradução estranhíssima, artificial, quimericamente detestável.

    - António

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  2. A minha experiência com a tradução de MG Llansol das «Flores do Mal» foi exactamente a mesma. Depois adquiri o original e mais tarde li a obra na tradução de Fernando Pinto do Amaral, que fez, de resto, um trabalho excelente. Achei que a minhha implicância com as traduções de MGL fosse só o meu mau feitio a manifestar-se, mas pelos vistos não.
    Cumprimentos,
    Tatiana

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