terça-feira, 30 de junho de 2009

(...)
I'm a-goin' back out 'fore the rain starts a-fallin',
I'll walk to the depths of the deepest black forest,
Where the people are many and their hands are all empty,
Where the pellets of poison are flooding their waters,
Where the home in the valley meets the damp dirty prison,
Where the executioner's face is always well hidden,
Where hunger is ugly, where souls are forgotten,
Where black is the color, where none is the number,
And I'll tell it and think it and speak it and breathe it,
And reflect it from the mountain so all souls can see it,
Then I'll stand on the ocean until I start sinkin',
But I'll know my song well before I start singin',
(...)
Bob Dylan, excerto de "A Hard Rain's gonna Fall", 1962.

domingo, 28 de junho de 2009

Minha vida não é esta hora abrupta
em que me vês tão açodado.
Sou uma árvore em frente do meu fundo,
sou só uma das minhas muitas bocas
e, delas, a que mais cedo se fecha.

Sou o silêncio que há entre duas notas
que só a custo se acostumam uma à outra:
porque a da morte quer elevar-se -

Mas no intervalo escuro se congraçam
ambas trémulas.
E a melodia é bela.

Rainer Maria Rilke, Livro das Horas, Livro Primeiro: O Livro da Vida Monástica (in Poemas, As Elegias de Duíno, Sonetos a Orfeu, Editorial Asa, Porto, 2003⁵, trad. Paulo Quintela)

sábado, 27 de junho de 2009

The Naming of Cats

The Naming of Cats is a difficult matter,
It isn't just one of your holiday games;
You may think at first I'm as mad as a hatter
When I tell you, a cat must have THREE DIFFERENT NAMES.
First of all, there's the name that the family use daily,
Such as Peter, Augustus, Alonzo or James,
Such as Victor or Jonathan, George or Bill Bailey--
All of them sensible everyday names.
There are fancier names if you think they sound sweeter,
Some for the gentlemen, some for the dames:
Such as Plato, Admetus, Electra, Demeter--
But all of them sensible everyday names.
But I tell you, a cat needs a name that's particular,
A name that's peculiar, and more dignified,
Else how can he keep up his tail perpendicular,
Or spread out his whiskers, or cherish his pride?
Of names of this kind, I can give you a quorum,
Such as Munkustrap, Quaxo, or Coricopat,
Such as Bombalurina, or else Jellylorum-
Names that never belong to more than one cat.
But above and beyond there's still one name left over,
And that is the name that you never will guess;
The name that no human research can discover--
But THE CAT HIMSELF KNOWS, and will never confess.
When you notice a cat in profound meditation,
The reason, I tell you, is always the same:
His mind is engaged in a rapt contemplation
Of the thought, of the thought, of the thought of his name:
His ineffable effable
Effanineffable
Deep and inscrutable singular Name.

T.S. Eliot in Old Possum's Book of Pratical Cats

O autor sem ideias

O bom escritor nem sempre é aquele que sabe escrever buganvília. Para colar palavras a uma folha de papel, é necessário saber pensar. Imagine-se o seguinte: determinado autor conhece mil palavras (as que não conhecer, procura no dicionário), diz-se inspirado e compõe um conjunto de versos. Ora, desejando escrever algo elevado mas não conseguindo ultrapassar as barreiras da mediocridade, este autor que não pensa estará a tentar compor algo para o qual não está preparado. Contudo, este autor sem ideias encontrará um público que não procura ideias. O público iletrado é o terceiro lado de um triângulo que envolve texto (fraco) e escritor (medíocre). Por um lado, temos o poeta que não lê bem e que escreve mal, por outro, temos um público que, por ter leituras erradas (ou simplesmente não as ter), forma uma maioria e se torna palco para o mau escritor.

Ténis; lição de iniciação: Aquiles vs. tartaruga


retrato do tenista quando jovem

No princípio, julgamos, é muito simples: esperar pela bola, medir o ressalto, preparar a raquete. Um golpe certeiro. A libertação exacta de uma tensão acumulada pelo braço na espera. Com alguma colaboração do pulso. Não é tão simples assim, mas obedece ao princípio geral das nossas realizações: aplicar a quantidade adequada de força num dado ponto na direcção exigida pelas circunstâncias no momento certo. Não é muito diferente de um engate. A bola é o centro. Uma massa com peso que atravessa simultaneamente o espaço e o tempo, de acordo com velhas leis da física, confirmadas em cada batida. Se formos bem sucedidos o que se passa em seguida não nos diz respeito. Um estrangeiro é posto à prova do outro lado da fronteira diante dos nossos olhos num teste análogo ao nosso. A questão que lhe é colocada é igual à nossa em qualidade mas poderá diferir em dificuldade. O grau de responsabilidade que nos é imputável no que concerne ao teste do estrangeiro seria achado por meio da fórmula literária que resumiria a intensidade da agência do herói trágico no desenlace do drama, acaso tal fórmula existisse: correlação entre vontade e o destino (τύχη), sendo a vontade o esforço da consciência que dita uma acção que tenta alcançar, por meio da antecipação mental de determinados processos mecânicos possíveis nas leis do mundo, um fim previsto, um estado distinto dos anteriores cujo princípio causador é a nossa acção. Mas é impossível precisar a proporção entre eles, ou sequer a natureza da sua relação: no court, como na cena trágica, o kosmos não é imanente. As suas leis são obscuras e incertas: difíceis de deduzir e praticamente impossíveis de domar. Zeus outorgou aos homens a possibilidade de conhecer, mas esta vem por meio do sofrimento e da experiência - da paciência (no sentido etimológico). Sabemos tão só que a vontade influi muito menos do que o destino. Um olhar ou, mais commumente, um corpo agudo intui por vezes saltos epistemológicos que perturbam a ordem. O caso é bastante frequente; os deuses são liberais, quase democráticos: até o mais inepto dos iniciantes consegue um winner. Mas na maioria das vezes a inspiração não é mais do que o engano de um deus: bola na rede, bola fora, a vergonhosa madeirada - um erro não forçado, o mito de Penteu redescoberto. O melhor é jogar pelo seguro: levantar bem a bola sobre a rede com a força necessária para que passe com segurança sem exceder os limites - μηδὴν ἄγαν: nada em excesso. E chega a prova do oponente. É, dizia eu, um espectáculo alheio. Podes prevenir uma nova interrogação como réplica e procurar o lugar mais adequado no court (mas como saber qual o local mais seguro para se estar? Com o tempo aprenderás que há uma zona a que se chama o “lugar do morto”). Para além disso nada podemos. Tudo depende do estrangeiro do outro lado da fronteira. Assistimos ao seu desconforto diante da bola. A estranheza com que tenta opor ao movimento da bola o movimento da raquete, uma asa que acresce incomodamente a um dos braços. Compreendes a sua atrapalhação. Sentes até simpatia. Reconheces no estrangeiro um duplo, é um estranho diante da bola, que transpôs a rede, não diante de outro homem. Como Édipo diante da Esfinge ele é posto à prova: não há antes nem depois, o tempo é descontínuo, todo o mundo acontece no absoluto do instante. Se não erra, a questão reconduz ao momento da interrogação, de novo, pela primeira vez: um será aniquilado e outro triunfará. O seu destino reflecte a dualidade de uma mesma realidade. Não te esqueças disto: no ténis, como na vida, os erros acarretam consequências muito mais profundas do que os actos que emanam das tuas boas qualidades.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Uma fala de «Equus» de Sidney Lumet, 1977















[Martin Dysart] I wish...there was somebody in this life I could show... one... instinctive, absolutely unbrisk person that I could take to Greece... and stand in front of certain shrines and sacred streams and say: ''Look... life is only comprehensible through a thousand... local gods. Not just the old, dead gods, with names like Zeus... but living geniuses of place and person. Not just Greece, but modern England. Here spirits of certain trees... of certain curves of brick wall... of certain fish-and-chip shops, if you like... and slate roofs... frowns in people, slouches.'' I'd say to them: Worship... all you can see... and more will appear.

O Rei da Pop - Michael Jackson (1958 - 2009)



A minha música favorita dele é Billy Jean.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Leonard Cohen, "Take This Longing"



Many men have loved the bells
you fastened to the rein,
and everyone who wanted you
they found what they will always want again.
Your beauty lost to you yourself
just as it was lost to them.
Oh take this longing from my tongue,
whatever useless things these hands have done.
Let me see your beauty broken down
like you would do for one you love.
Your body like a searchlight
my poverty revealed,
I would like to try your charity
until you cry, Now you must try my greed.
And everything depends upon
how near you sleep to me
Just take this longing from my tongue
all the lonely things my hands have done.
Let me see your beauty broken down
like you would do for one your love.
Hungry as an archway
through which the troops have passed,
I stand in ruins behind you,
with your winter clothes, your broken sandal straps.
I love to see you naked over there
especially from the back.
Oh take this longing from my tongue,
all the useless things my hands have done,
untie for me your hired blue gown,
like you would do for one that you love.
You're faithful to the better man,
I'm afraid that he left.
So let me judge your love affair
in this very room where I have sentenced
mine to death.
I'll even wear these old laurel leaves
that he's shaken from his head.
Just take this longing from my tongue,
all the useless things my hands have done,
let me see your beauty broken down,
like you would do for one you love.
Like you would do for one you love.

Leonard Cohen, "Take this Longing"

102.7 fm

Amanhã, às 19 horas, o Luís Ene vai ler de textos da segunda parte de A Prisão do Ético na Rua do Imaginário.

quarta-feira, 24 de junho de 2009













Though nothing can bring back the hour
Of splendour in the grass, of glory in the flower;
We will grieve not, rather find
Strength in what remains behind;
In the primal sympathy
Which having been must ever be;
In the soothing thoughts that spring
Out of human suffering;
In the faith that looks through death
In years that bring the philosophic mind.


William Wordsworth, "Ode: Intimations of Imortality from Recollections of Early Childhood", Selected Poems, Penguin, 2004.

Festival de Teatro de Almada 2009



O Festival de Teatro de Almada terá lugar entre 4 e 18 de Julho em Almada e Lisboa, com a participação de várias companhias teatrais nacionais e estrangeiras. Paralelamente às representações dramáticas, haverá vários eventos, como colóquios, concertos, exposições e workshops. Para os interessados, encontrarão a programação aqui.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Freezing my Soul - Uma fala de «Mccabe e Mrs. Miller»














[Mccabe]: If just one time you could be sweet without no money around. I think I could....Well, I'll tell you something. I've got poetry in me. I do. I've got poetry in me. I ain't going to put it down on paper.
I ain't no educated man. I got sense enough not to try it. I can't never say nothing to you. If you'd just one time let me run the show, I'd.... You're just freezing my soul, that's what you're doing. Freezing my soul.


Um documentário que recomendo. Está em partes no youtube.

domingo, 21 de junho de 2009

onde cai a noite há o aroma da casa
madeira velha sândalo terra molhada penumbra
cor amarela impressão de pés descalços
nos joelhos sobre o soalho

a casa respira mesmo onde tudo te é estranho
mas o teu corpo sei-o tombado
sobre a sebe mais recolhida
da noite adormecido sem mácula

eu perdi-te atravessando a distante e densa cidade
de babilónia derramada sobre ti com uma mágoa de cores
e transporto uma imagem tua
por vagões de comboios percorrendo cidades
e cidades e as suas cores ora ténues
ora vincadas por entre o fumo e ruído
tenho sido conversas lentas em busca de uma direcção
fio aprumado no saibro à beira de caminhos
entre carris atravessando

uma imagem vincada de ti e sei como é o vazio
o seu semblante escuro rouba todas as palavras
no fim do afecto configurando as feridas
veias inertes colapsando como cartas
que a imaginação não pode moldar
porque hesitam na pele os poros fechando-se do tempo

de ti a imagem um rosto
indeciso amanhecendo uma ferida
estanque frente ao pélago
sabendo que alguém por nós decidiu
o que não nos pertence:
a geometria de cada noite
Na nossa natureza há, porém, uma provisão, a um tempo maravilhosa e boa, de que o que sofre não conheça nunca a intensidade do que sente pela sua tortura presente, mas principalmente pela dor que depois lhe fica. Com uma atitude quase serena, portanto, Hester Prynne atravessou esta parte do seu suplício, e chegou a uma espécie de cadafalso, na extremidade ocidental da praça do mercado.

Nathaniel Hawthorne, A Letra Vermelha, Fernando Pessoa (Trad.), Assírio e Alvim, 2002.





















Fotografia: Henri Cartier-Bresson

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Serviço público

A livraria da Biblioteca Nacional, da Guimarães Editora, tem pena dos pobres. Vendeu-me Elogio da Loucura, de Erasmo, e A Cidade do Sol, de Campanella, a 2 euros cada.

quinta-feira, 18 de junho de 2009




















À noite lavo a cara no quintal.
De estrelas rudes o firmamento brilha.
Como sal no machado o raio estelar
arrefece a pipa cheia até cima.

O portão é trancado a ferrolho
e a severa terra é justa e agreste.
Impossível encontrar um mais puro
fundo que a verdade do linho fresco.

Como sal, uma estrela funde na pipa
e a água gelada é mais negra.
Mais pura a morte, mais salgada a desdita,
mais terrível e verdadeira a terra.

1921

Óssip Mandelstam, Fogo Errante, Relógio d'Água, 2001.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

"António Lobo Antunes: a arte do romance - Jornada comemorativa dos 30 anos de publicação de Memória de Elefante"

Ainda sobre o espólio de Jorge de Sena.
da velocidade cresce
o seu modo repentino
indefeso de sombra
os seus ombros despidos e dentro luz
um modo doloroso
de deixar as mãos circundarem a água
o seu modo estrangeiro
de muralha e cidade
o seu corpo limiar movendo-se
dentro da cadência escurecida da penumbra
a luz nunca veio perto de
coisas que suturei e nunca aprendi
mas agora vejo muito bem
um nome subindo como um arrepio
um gesto de se deixar cair
ao comprido no solo
e nunca acordar inundado de sol

isto aconteceu
o corpo adormeceu na noite
e amanheceu estendido no cerejal

de tudo o mais doloroso de
aprender é a velocidade

terça-feira, 16 de junho de 2009

The Hanging Man

By the roots of my hair some god got hold of me.
I sizzled in his blue volts like a desert prophet.

The nights snapped out of sight like a lizard's eyelid:
A world of white bald days in a shadeless socket.

A vulturous boredoom pinned me in this tree.
If he were I, he would do what I did.

Silvia Plath, Ariel, Relógio d'Água, 1996.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Espólio de Jorge de Sena doado quinta-feira à BN

O espólio de Jorge de Sena vai ser doado quinta-feira à Biblioteca Nacional (BN), numa cerimónia em que será inaugurada uma exposição com documentos do acervo do escritor e que conta com a participação do ministro da Cultura.

Além de manuscritos, documentos biográficos e correspondência com outros escritores portugueses da segunda metade do século XX, o espólio de Jorge de Sena doado pela viúva e filhos do escritor à Biblioteca Nacional integra a totalidade da biblioteca pessoal do escritor, o que constitui um «importante enriquecimento» do Arquivo da Cultura Portuguesa Contemporânea da Biblioteca Nacional (BN), disse à agência Lusa o director da BN.

«Até ao momento, à BN ainda só chegaram obras de literatura brasileira e africana de expressão portuguesa, mas todos os livros de Jorge de Sena estão a ser trazidos e grande parte do espólio pessoal do autor já está na biblioteca», acrescentou Jorge Couto.

Diário Digital / Lusa

domingo, 14 de junho de 2009

Recordo que, em certos momentos das minhas dores de cabeça, quando a crise aumentava, tinha um desejo imenso de fazer sofrer um outro ser humano, batendo-lhe precisamente na mesma zona do crânio.
Desejos semelhantes são muito frequentes entre os homens. Nestas circunstâncias, por diversas vezes tenho cedido à tentação, no máximo, de proferir palavras ofensivas. Obediência à gravidade. O maior pecado. Assim se corrompe a função da linguagem, que é a de expressar a relação entre as coisas.

Simone Weil, A Gravidade e a Graça, Relógio d'Água, 2004.

O Fundo



Diz Belial, conselheiro de Satã, o que é viver no fundo:

Reserved and destined to eternal woe;
Whatever doing, what can we suffer more,
What can we suffer worse? Is this then worst.


- John Milton, Paradise Lost

sábado, 13 de junho de 2009

*

Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra; lá, a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.

João Cabral de Melo Neto, A Educação pela Pedra, Livros Cotovia, 2006.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Altán Walker, Of Earthly Love

O nº 105 da GRANTA: The Magazine of New Writing (Primavera de 2009) traz um artigo dedicado ao romance Of Earthly Love, da autoria de Altán Walker, escritora que se suicidou em Dezembro de 2007. São também publicados dois capítulos dessa história que a sua autora definia como a story of adultery, a love story about a girl and two men. Porém, a sua editora (que eu ainda não consegui determinar quem é, a GRANTA, nesse aspecto, não é muito clara), na nota que faz à apresentação do capítulo na revista é um pouco mais incisiva: There have been only a very fiew occassions when an unpublished writer's manuscript has made my scalp prickle and my heart race, but this was one of them.
I read the chapters Altán had sent in one sitting. The narrative voice commanded attention from the opening lines: it was arch and diamond-hard, and yet warmth curled through it, like laughter barely supressed.

O romance, consta, será publicado em Maio de 2010. Deixo-vos excertos do capítulo primeiro de um romance que me pareceu muito promissor. A narrativa decorre em 1980, em Dublin.

It suddendly seemed to me that evil was near.
Evil is near me now, I thought, in this imperfect and malodorous shade: evil fawns and gambols, as the weacked weasel and the stoat. It is a great mistake to think evil is far, I thought, for evil is ever near: evil comes closer and closer, and soon will spring out, and pounce.
(...)
'You're podzol.' I said. 'It is evil Russian soil that all the good has drained right out of, that is turning into evil ash.'
(...)
What strange and beatiful eyes he has, I thought: all the laughs and tears of the minerals: half the jewel and half the mine, I thought: great shade that has no name.
Altán Walker




A minha imagem mental de escritor é a de Jorge de Sena, ainda menino, cabeça encostada contra as teclas do piano, com o seu papagaio verde ao lado e tocando devagar as teclas. A minha imagem mental de poeta é a descrição que Jorge de Sena faz do momento em que pela primeira vez escutou a La Cathédral Engloutie de Débussy ou a primeira aparição do poema como narrada em Sinais de Fogo.

Post-Scriptum

Não sou daqueles cujos ossos se guardam,
nem sou sequer dos que os vindouros lamentam
não hajam sido guardados a tempo de ser ossos.

Igualmente não sou dos que serão estandartes
em lutas de sangue ou de palavras,
por uns odiados quando me amem outros.

Não sou sequer dos que são voz de encanto,
ciciando na penumbra ao jovem solitário,
a beleza vaga que em seus sonhos houver.

Nem serei ao menos consolação dos tristes,
dos humilhados, dos que fervem raivas
de uma vida inteira e pouco traída.

Não, não serei nada do que fica ou serve,
e morrerei, quando morrer, comigo.

Só muito a medo, horas mortas, me lerá,
de todos e de si disfarçando,
curioso, aquel' que aceita suspeitar
quanto mesmo a poesia ainda é disfarça da vida.

Jorge de Sena, A Arte de Jorge de Sena, 2004.

Fidelidade

Diz-me devagar coisa nenhuma, assim
como a só presença com que me perdoas
esta fidelidade ao meu destino.
Quanto assim não digas é por mim
que o dizes. E os destinos vivem-se
como outra vida. Ou como solidão.
E quem lá entra? E quem lá pode estar
mais que o momento de estar só comigo?
Diz-me assim devagar coisa nenhuma:
o que à morte se diria se ela ouvisse,
ou se diria aos mortos, se voltassem.

Jorge de Sena, A Arte de Jorge de Sena, 2004.

II

Sometimes beauty
craks
you can see the body
it cracks
you can see the parts
that you'd like to make love
to and with
they crack in heat
and after
sometimes you dream
of beauty before.

Às vezes beleza
estala
pode ver-se o corpo
estala
podem ver-se as partes
que se gostaria de fazer amor
a e com
estalam no ardor
e depois
às vezes sonha-se
da beleza, antes.

Jorge de Sena, Poesia III, 1989.

Poupança

Enquanto o nosso primeiro-ministro fala sobre «crise do capitalismo» e «necessidade de maior investimento público», David Brooks escreve no New York Times sobre poupança. Alguns excertos:

(...)

The leverage wave crashed last fall. Facing the possibility of systemic collapse, the government stepped in and replaced private borrowing with public borrowing. The Federal Reserve printed money at incredible rates, and federal spending ballooned. In 2007, the federal deficit was 1.2 percent of G.D.P. Two years later, it’s at 13 percent.

(...)

The members of the political class face a set of monumental tasks. First, they have to persuade a country to postpone gratification for the sake of rebuilding the country. This country hasn’t accepted sacrifice in 50 years.

Second, political leaders will have to raise taxes and cut spending to get the federal fiscal house in order, and they will have to do it at a time when voters are already scaling back their lifestyles.

Third, they will have to refrain from doing anything that might further damage America’s fiscal position, which is extremely fragile. That means not passing a health care reform package unless it is really and truly paid for. That means forming a Social Security commission next year to tackle that entitlement problem.

Fourth, the political class is going to attempt the politically unthinkable. The U.S. is going to have to move toward a consumption tax, to discourage spending and encourage savings.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Aparição

A velha visitada pelo fantasma mulato
da telenovela das oito a inveja
de todas as vizinhas e comadres nos quintais.

Luís Serra, Brinquedos de Latão e Sarampo, Apenas Livros, 2009.

Ausência

Primavera
cheia com
flores de
plástico o
prometido
é de vidro.

Luís Serra, Brinquedos de Latão e Sarampo, Apenas Livros, 2009.

Uma tarde quente de chuva

Uma mosca no resto doce do prato de veneno
um rumo porno e cor de corrida
um motor imóvel a dar um baile
uma vontade de foder.

Luís Serra, Brinquedos de Latão e Sarampo, Apenas Livros, 2009.

Duelo

Ao desobediente sorriso da figueira
o gato mostrou melancolia às riscas.

Luís Serra, Brinquedos de Latão e Sarampo, Apenas Livros, 2009.

De Subir

Faetonte, meu rapaz, boas notícias: hoje fazem de ti um homem
Tomando nas mãos as rédeas do carro do sol aprenderás que melhor é subir

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Rápida a Sombra

Luzem na água
Cintilações
Divagam monocórdicos
Sons, ruídos
Que acompanham
A tarde a esvanecer-se

Pássaros empalhados
Vazios e nostálgicos
Marcam o ritmo

Caem como chuva
Húmidas sensações
Atravessam-se no peito
E perdem-se
Num vago mastigar

Há uma guerra
Sem sentido com a natureza
Que apaga no alcatrão
As palavras sujas

Há sons no esquecimento
Que têm o calor
Das frases feitas

Uma inundação
De saliva na boca
Ao desejar
Caminhos transparentes
Onde as cores
Fazem acordar

É um clarão
A iluminar as colinas
Que se olham com fascínio

É este querer
Que vem do nada
Que faz morrer

Rui Carlos Souto, Maneiras de Andar, Black Sun Editores, 2001.

Poema Hoje

Tenho um cavalo alado
No sangue. Que voa

Sinto as narinas
O fôlego. O contacto

As casas. A existência
Do subúrbio sobre as asas

Tem a cor do fumo
E voa com as mariposas das fábricas

Voa sobre o oceano azul, sobre a rua
Sobre as ideias

Tem a estética da escultura parada
Tem o condão de ser miragem
E a ilusão de galopar

Rui Carlos Souto, Maneiras de Andar, Black Sun Editores, 2001.
dentro da palavra há um gesto de agarrar
uma mão fechada sem pontos de fuga
já inciso na hora do fio
há um gesto de prender
da sua cor de linho é a mulher
dentro dos passos do homem
e também o seu colo arco recurvo
e a linha dos seus ombros de deixar
correr a penumbra
e a sua maneira de flor ao tender
para a sombra estendendo a mão
num gesto ainda por despertar

gesto do homem dentro do labirinto:
toda a memória astrolábio é uma coisa
de pegar na mão e esperar dentro do fio

e há um golpe exacto de terra dentro da mulher
e a sua maneira de ser fio pertence ao olvido
maneira de terra dentro do arco
no gesto de concorrer de arremessar

daí a mulher ser memória e ser saída
silêncio de cumprir o fio e o labirinto

Ribeira

Não tanto como Pessoa amei

Não tanto como Pessoa amei
As cidades de hoje, no Norte.
Mas sempre à beira-morte
As conheci. Reconheci.
Escuridão opressa
Em outro continente.
Au bout de la nuit
Surgiu-me o seu olhar.
Eu o segui então à beira
De morrer, à beira de ser
Logo escuridão compacta.
Um grito ao longe. Exacta,
inflexível, a direcção tomada:
É para lá da morte o próximo comboio.

M. António, Cinquenta Anos Cinquenta Poemas, 1988.

terça-feira, 9 de junho de 2009

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Riscos

O problema é dar início a algo. A primeira frase do caderno serve, geralmente, para ser riscada.

Homem ideal

Pôr a máscara todos os dias:

And in the everyday world, nothing to be done but respectably carry on the huge pretense of living as himself, with all the shame of masquerading as the ideal man
.

- Philip Roth, American Pastoral

Sylvia Plath Reads 'Daddy'

À medida que a vida vai ficando mais curta, perguntamo-nos o mesmo com cada vez maior frequência. Escrevi sete romances. Adoraria escrever outros sete antes de morrer. Mas a vida é curta. E que tal desfrutá-la mais? Por vezes, tenho de me forçar a fazê-lo. Porque escrevo? Que significado tem isso? Em primeiro lugar, como disse, é o instinto de estar sozinho num quarto. Em segundo, há em mim um lado competitivo quase pueril, que quer tentar escrever um bom livro mais uma vez. Acredito cada vez menos na eternidade dos autores. Estamos a ler muito poucos dos livros escritos há duzentos anos. As coisas estão a mudar tão depressa que os livros escritos hoje serão provavelmente esquecidos dentro de cem anos. Muito poucos serão lidos. Daqui a duzentos anos, estarão vivos talvez cinco dos livros escritos hoje. Terei a certeza de estar a escrever um desses cinco? Mas, e será esse o sentido da escrita? Porque deveria eu preocupar-me em ser lido duzentos anos depois? Não deveria preocupar-me em viver mais? Precisarei do consolo de ser lido no futuro? Penso em todas essas coisas e continuo a escrever. Não sei porquê. Mas nunca desisto.

Orhan Pamuk, Outras Cores

domingo, 7 de junho de 2009

nas várzeas da sombra
vagueava uma esperança
um pensamento inconfessado
por partidas milagrosas
e uma saliência concreta:
como a do macho pela fêmea.

surgiu então à tarde
uma ternura contrária ao vento
sulcando as toscas tulipas
com a cinza dos símbolos:
foi uma vigília ardente das estrelas
pela noite em númen.

nós colámos os sentimentos
de acordo com as instruções
do afecto.

e ficámos a ver a paisagem.

Colóquio sobre Daniel Faria


Eternal Sunshine of the Spotless Mind

Ainda bem que vi este filme em 2004 no cinema e que me emocionei e que depois o vi em casa umas cinco vezes. Não aguentaria apanhar o filme a meio, numa das noites de Sábado da RTP 2, sem nunca o ter visto.

sábado, 6 de junho de 2009

Serralves

quantos passos para saber a forma de uma terra estranha
digamos: uma ilha – quantos passos
para pertencer à força do relâmpago
e à sua forma de seta breve, de prelúdio e de fuga
quanto tempo para percorrer os medos menores
que estão dentro do crepúsculo
de um ou dois gestos recurvos como silos
de um ou dois corpos breves de terem trigo por dentro

quantos anos é preciso gastar para saber
como respira o tom mais áspero do mar
antes de correr para fora da noite
antes de escapar para dentro da tempestade
antes que a conversa nas marés prefigure
o hábito de desferir a palavra enquanto seta

porque sendo a carne mortal
tudo tem um fim e tudo se gasta
e também o amor
e a espinha do homem dentro do amor
curvada dentro da fome e gastando-se
na melancolia de pensar nas pequenas vidas
dentro dos quartos que deviam durar para sempre
nuas de pensamento apenas imperecíveis como
tocar a pedra e mulheres com poses de estátuas
que ficam vivas só para o momento em que o poeta
medíocre as descreve enquanto fome

e também ter fome morrendo a carne
é um hábito de perder

por isso te comovem os passos em terra estranha
passos tão dentro de poço recurvos
em ires e vires de luz de meio-dia e de noite

e uma certa maneira de ser cego te comove
dentro das cores que estão em movimento

como uma maneira de nascer sem sangue
é estar estranho e novo na terra
como se as formas não te gastassem

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Quotidiano 2

Boas notícias

Segundo notícia do Público, a Guimarães prepara-se para editar a obra completa de Jorge de Sena. Sendo admirador do autor, fico contente.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

"Em vez de dizer simplesmente "já não valho nada", a mentira moral na boca do decadente diz: "Nada vale nada - a vida não vale de nada.""

Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos, 87


Quotidiano

CTT

Sozinho na sala com a funcionária dos Correios, fui obrigado a desencostar os braços transpirados do balcão para ir tirar uma senha.

***


- Não está aqui mais ninguém. Só eu. Para quê uma senha?

- Estatísticas.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Sou do teu modo de atravessar as sombras
E da solidão repetida em dois ou três gestos
De cordas e de divisar a solidão és da chuva deste tempo
E de a ver cair e do seu gume ambíguo
Que te fala do fogo e te devolve ao fogo
E não sou de longe
mas da tua voz antes da sede
não do passo guardado do caminho
para memória

E não somos da palavra
De tecer penumbras dentro
na hora torrencial e mínima da travessia
Ulysses is for me the prototype of man, not only modern man, but man of the future as well, because he represents the type of the «trapped» voyager. His voyage was a voyage toward the center, toward Ithaca, which is to say, toward himself. He was a fine navigator, but destiny - spoken here in terms of initiation which he had to overcome - forced him to postpone indefinitely his return to hearth and home. I think that the myth of Ulysses is very important for us. We will all be a little like Ulysses, for in searching, in hoping to arrive, and finnaly, without a doubt, in finding again the homeland, the hearth, we re-discover ourselves. But as in the Labyrinth, in finding one's home again, one becomes a new being.

Mircea Eliade, L'Epreuve du Labryinthe
I am become a name;
For always roaming with a hungry heart
Much have I seen and known: cities of men
And manners, climates, councils, governments,
Myself not least, but honoured of them all;
And drunk delight of battle with my peers,
Far on the ringing plains of windy Troy.
I am part of all that I have met;
Yet all experience is an arch wherethro'
Gleams that untravelled world, whose margin fades
For ever and for ever when I move.

Tennyson, Ulysses

Elliot Smith ( Paranoid Park, depois da tentativa de suicídio em Tenenbaums)

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Pascal Quignard, La Frontière


«C'est pourquoi le parc est peuplé d'hommes qui se suicident et de danseurs qui tombent. C'est ainsi que le marquis de Fronteira tira vengeance de la vengeance de Madame d'Oeiras. C'est pourquoi les animaux sur les azulejos ont pris le visage des hommes. C'est pourquoi au coin des fresques, à l'angle de ces murs, on voit des figures accroupies qui relèvent leur jupe et excrètent dans l'ombre»

Nelson Rodrigues com Otto Lara Resende 1

Juventude

A juventude é uma doença. Nelson Rodrigues dizia: «Envelheçam». Vejamos o que diz Primo Levi (em Se não agora, quando?):

Tu és muito jovem. É uma doença que se cura depressa, mesmo sem medicamentos, mas pode ser igualmente perigosa. Enquanto a tiveres, tem cuidado.