sexta-feira, 30 de setembro de 2011

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Um antigo país

108. Acordar de manhã num comboio que parou, à frente do mar que se consegue sentir; os seixos polidos na Ponte de Dusan em Skopje, onde, aos cinco anos, notei pela primeira vez que tinha sombra; esquiar com o meu pai em Jahorina, perto de Sarajevo; uma noite de Maio na linha de Silba no norte da Dalmácia com as suas abundantes plantas mediterrânicas; um rapaz a matar peixes à pedrada no lago Prespa na Macedónia; um fulminante caso amoroso adolescente de três dias em Vrsar; serviço militar em Rijeka, em Trsat; uma pequena estação de comboios na linha Zagreb-Belgrado cujo nome esqueci, com uma sala de espera saída do filme de Menzel, Comboios Vigiados de Perto (ali a solidão era espessa como azeite); viagens de estudo às cataratas do rio Krka na Herzegovina; um regato lodoso nos subúrbios de Zenica na Bósnia, ao lado do qual eu ia a pé para uma escola chamada "As irmãs Dietrich", com os atacadores desatados porque ainda não os sabia atar; um monte de baratas num quarto de hotel da cidade eslavónia de Osijek e dormir de luz acesa; o golo de Dzajic contra a Inglaterra no campeonato europeu de futebol em Itália em 1968; viajar pelo caminho de ferro de bitola mais estreita de Sarajevo para Niksic no Montenegro; a recepção a Djurda Bjedov no cais de Split depois de ter ganho a medalha de ouro no México; os primeiros concertos do grupo bósnio Bijelo Dugme num pavilhão desportivo de Nova Belgrado; a nascente do rio Una; cantar o hino nacional antes dos jogos entre repúblicas (um coro de cem mil pessoas); a sinagoga abandonada de Subotica; todos os cestos da estrela do basquetebol Kresimir Cosic; afogar-me no Vardar (aos quatro anos o meu primeiro encontro com a morte); uma avenida de árvores escura como um túnel; em Pula, e um aguaceiro de Verão sobre essa avenida; os pés da estátua de Grgur de Nin; o silêncio e o vazio ensombrado das ruas de Ohrid no calor de um dia de Agosto; um choque eléctrico em criança, a fazer chichi ao lado de uma valeta de uma casa abandonada perto de uma aldeia de Niksic, à espera, enquanto pioneiro, para cumprimentar o Presidente no regresso de visitas a países asiáticos e africanos não-alinhados; a primeira guitarra-baixo eléctrica Jolan, de fabrico checo; dormir numa tenda nas montanhas de relevo cársico da Herzegovina e viajar lentamente de Mostar, descendo o vale Neretva, para Dubrovnik; notícias do terramoto em Skopje; a camisa de xadrez que recebi como auxílio do México (ou seria da Venezuela?); um vagabundo no lago Matko a cantar acompanhado por um instrumento oriental que guinchava. "O que vamos comer ao chá: batatas, pão e queijo..."
«Estas são as imagens frias, melancólicas, objectivas (ou mais precisamente fotografias verbais) de uma vida passada num antigo país que nunca mais voltará a ser possível ligar como um todo», escreve Mihajlo P. numa carta.

Dubravka Ugresic, O Museu da Rendição Incondicional, Sofia Castro Rodrigues (trad.), Cavalo de Ferro, 2011.

Clitemnestra rules

This father of yours, whom you are always morning,
Had killed your sister, sacrificing her
To Artemis, the only Greek who could endure
To do it - though his part, when he begot her,
Was so much less than mine, who bore the child.
So tell me why, in deference to whom,
He sacrificed her? For the Greeks, you say?
What right had they to kill a child of mine?
But if you say he killed my child to serve
His brother Menelaus, should not he
Pay me for that? Did not his brother have
Two sons, and should they rather not have died,
The sons of Helen who caused the war
And Menelaus who had started it?
Or had the god of death some strange desire
To feast on mine, and not on Helen's children?

Sófocles, Electra, vv. 530-44. Tradução de H.D.F. Kitto (Oxford World Classics, 2008 - reedição.)

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Egisto: és um mariquinhas!

Electra: And among all the Argives this was said of you, "The man belongs to his wife, not she to him." Yet it is a disgrace for the woman, rather than the man, to be the head of a house. I loathe any child who derives his name in the city not from his father but from his mother. For when a man marries a wife of greater eminence than himself, no account is taken of the man but only of his wife.
But where you were most deceived and mistaken was that you thought you were really someone on the strength of your money. But money does nothing except stay with us a short while. It is character that is reliable, not money. Character stands beside us always and shoulders our troubles, while wealth lives unjustly with fools and then flies off from their houses, having blossomed for only a short time.
Your conduct toward women (since it ill befits a virgin to describe it) I pass over in silence, but I shall give an intelligible hint. You acted with outrage thinking that you had a king's house and were well provided with good looks. But I'd rather have a husband who is not girlish in his looks but of the manly sort. For children of the manly hold to valor, while the pretty ones are only good to adorn a chorus.

Eurípides, Electra (tradução de David Kovacs, LCL 1998).

Fragmento 15B de Safo

...E que te encontre amarga, Cípris,
e que não se vanglorie nem diga,
Dorica, de como, segunda vez,
veio para um amor desejado...


Safo, tradução minha a partir da edição crítica de Eva-Maria Voigt (Amsterdão, 1971).

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Dois ou três gestos

Fazer café de manhã demora dois ou três gestos. O metal da cafeteira aquece demasiado com a água quente e queima-lhe sempre as mãos. Esquece-se sempre da pega, nas costas dela, suspensa por um pego na porta da cozinha.
A conclusão lógica é a de que há coisas assim, demasiado cedo para pensarmos que existem.

"Midnight in Paris" de Woody Allen, 2011


Gostei mesmo deste filme. Gostei da fotografia. Do Hemingway paródia de Hemingway, do Dalí do Adrien Brody. Gostei da última cena, que me lembrou a última cena do Manhattan. Gostei da música.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Has no alternative

Think of the moment when far from land
Molested by a mile-a-minute wind
The ocean starts to roll, then rear, then roar
Over itself in rank on rank of waves
Their sides so steep their smoky crests so high
300,000 plunging tons of aircraft carrier
Dare not sport its beam.
But Troy, afraid, yet more afraid
Lest any lord of theirs should notice any of them
Flinching behind his mask
Has no alternative.
Just as those waves
Grow closer as they mount the continental shelf
Lift into breakers scoop the blue and then
Smother the glistening shingle

Logue's Homer, All Day Permanent Red: War Music Continued, Faber and Faber, 2003.

Lugano




Lugano (Edições Artefacto) será lançado no próximo dia 15 de Outubro na sede da Sociedade de Instrucção Guilherme Cossoul (que fica na Av. D. Carlos I, 61 A - é na mesma rua da Fundação para a Ciência e Tecnologia, em Santos). A apresentação será feita por Fernando Guerreiro.*

*Aos amigos que só ficam a saber agora, peço desculpa de não vos ter dito antes.

domingo, 25 de setembro de 2011

Ferozes Felinas Desditas

Muito desgostoso e melancólico estava o ferido D. Quixote, com o rosto envolto em ligaduras e marcado, não por um defeito, mas pelas unhas de um gato, desditas próprias da cavalaria andante.

Miguel de Cervantes, O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de la Mancha. José Bento (trad). Relógio d'Água: 2005

Hartse

Works of art are ascetic and unashamed; the culture industry is pornographic and prudish. Love is downgraded to romance.
Theodor Adorno e Max Horkheimer, The Culture Industry: Enlightenment as mass deception

diz Electra

pois como um lobo de coração selvagem é o ódio
contra a nossa mãe, e não pode ser adulado.

Ésquilo, Coéforas, 421-2

Empty now

Sand bars and sabre grass, salt flats and travelling dunes
Lead west, until, green in their shallow sea
That falls away into the Atlantic deeps
He sees the Islands of the West.
He who? Why, God, of course.
Who reaches before He looks
Bach for the ridge that is, save for a million footprints,
Empty now.

Logue's Homer, All Day Permanent Red: War Music Continued, Faber and Faber, 2003.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Nem tudo sobre Ítaca é silêncio

Ítaca

Graças a mãos amigas, pude ler Ítaca, revista fundada no decurso de 2009, por três investigadores do centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Os nomes: André Simões, J. P. Moreira e Tatiana Faia. Apaixonante leitura, além da qualidade da poesia como se hoje tudo fosse poema. Outros textos com imensa curiosidade, de como desenhar o mapa-mundi da minoria que existe e pensa e que por isso escreve e cria.
Falei de gravuras? Em geral tudo altamente inspirado e que inspira.


Jorge Listopad in Jornal de Letras, Ano XXXI, Número 1069 (De 21 de setembro a 4 de outubro de 2011).

Fonzie Kafka











Na secreta topografia das nossas vidas

Na secreta topografia das nossas vidas, é-nos revelado que eles - aqueles objectos fortuitos - estão connosco porque mais tarde podem, embora não necessariamente, revelar a sua lógica mais profunda. Ao que parece, os objectos fortuitos são atraídos pelo nosso campo magnético pessoal: de repente, de repente descobrimos um prego e uma corda entre os nossos bens, sem sermos capazes de explicar como ou por que motivo ali foram parar. No fim, simples senso comum, percebemos que o prego está lá para que um dia possamos pregá-lo, que a corda está lá para um dia nos enforcarmos.

Dubravka Ugresic, O Museu da Rendição Incondicional, Sofia Castro Rodrigues (trad.), Cavalo de Ferro, 2011.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

A caveira do mundo


Que cousa é Roma senão um sepulcro de si mesma? Em baxo as cinzas, em cima a estátua: em baxo os ossos, em cima o vulto. Este vulto, esta majestade, esta grandeza é a imagem, e só a imagem, do que está debaxo da terra.  Ordenou a Providência divina que Roma fosse tantas vezes destruída, e depois edificada sobre suas ruínas, para que a cabeça do mundo tivesse ũa caveira, em que se ver. Um homem pode-se ver na caveira de outro homem: a cabeça do mundo não se podia ver senão na sua própria caveira. Que é Roma levantada? A cabeça do mundo. Que é Roma caída? A caveira do mundo. Que são esses pedaços de Termas e Colisseus senão os ossos rotos, e troncados desta grande caveira? E que são essas Colunas, essas Agulhas desenterradas, senão os dentes, mais duros, desencaxados dela! Oh que sisuda seria a cabeça do mundo se se visse bem na sua caveira!

Sermão pregado pelo Pe. António Vieira em Roma, na Igreja de Santo António dos Portugueses, na Quarta-feira de Cinzas de 1672 (edição de Arnaldo do Espirito Santo, Cristina Pimentel, Ana Paula Banza).


Boneco: Vanitas, de Renard de Saint-André (1613-1677)

Hope is flattering me, diz ela na tradução de Hugh Lloyd-Jones

...For me to assent outright,
and say this adornment comes from the dearest
of mortals to me, Orestes... but hope is flattering me!
Ah, if it had only a sense of language, like a messenger,
so that I was not tossed this way and that in two minds,
but either I knew for certain that I must reject this lock,
supposing it were cut form an enemy's head,
or it was kin to me and could share my grief,
adorning this tomb and honoring my father!
But the gods on whom we call know well
by what tempests we, like sailors,
are buffeted; and if we were fated to find safety,
from a small seed a mighty trunk may come.

Ésquilo, «Coéforas», vv. 192 e segs., Oresteia, tradução inglesa de Hugh Lloyd-Jones (a.k.a. sir Hugh, a.k.a. Il Magnífico), University of California Press, Berkeley-Los Angeles, 1993.

E a hybris é isto

terça-feira, 20 de setembro de 2011

"Der amerikanische Freund" de Wim Wenders, 1977

Mas ainda existe?

Inês Pedrosa espera que DGLB não desapareça…

Estudantes de Clássicas de todo o mundo, uni-vos!


A Origem da Comédia também tem a sua reentré em Setembro. Já tarda: abriremos com uma sessão de divulgação da nossa muy-querida Associação no dia 23 de Setembro, esta Sexta-feira, pelas 17 horas, na sala 5.2 da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Dentro daquela abundante juventude que conta a Antiguidade Clássica nos seus interesses, estão convidados todos os jovens com idades compreendidas entre os 18 e os 34 anos, ou todos aqueles que ainda não tenham concluído o seu doutoramento.

Quaisquer dúvidas ou perguntas podem ser colocadas naturalmente neste blog, endereçadas a origemdacomedia@gmail.com, ou, o que é melhor, presencialmente!

Usque tunc.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Em Defesa das Humanidades

Afinal Tolstói deixou crescer a barba para que deixassem de gozar com as suas orelhas



Tirado daqui.

Uma nota lexicográfica

O verbo grego (antigo) ἀμύνω (amunô) representa um caso curioso de extensão semântica. Originalmente este verbo significa «socorrer», «prestar auxílio a». Mas, sobretudo em contexto homérico, surge muitas vezes com o sentido de vingar. Isto é, homericamente falando, a extensão lógica do sentido de «dar uma ajuda» é vingar-te se tu já não te puderes ajudar a ti próprio. A evolução possível de socorrer, o prolongamento de um gesto onde já não há mais nada. Isto é, uma coisa em que não tinhas pensado, a vingança como forma degradada de ajuda.

Carlito Azevedo em entrevista

Não acredito que a poesia tenha encontrado um lugar ao sol do mercado editorial, nem que, em suas melhores e mais honestas experiências, seja isso o que ela busca. E tenho a pretensão de ter encontrado a razão desse tão longo divórcio entre a poesia e o comércio na Roma Imperial, no século 1º a.C.: é o que chamo de "a maldição de Horácio".
Em Roma, e naquele momento, surgiu o primeiro esboço de algo semelhante às nossas livrarias, as "tabernae librariae", pequenas lojas onde os livros podiam ser folheados e até comprados por gente de fora dos círculos intelectuais dos escritores. Pois bem, é ali, em pleno nascimento do comércio do livro, que o poeta Horácio, o mesmo do "carpe diem", decide se recusar a ter seus livros expostos ao manuseio ou venda nas "tabernae librariae".

Vale a pena continuar a ler aqui.

Boa semana

domingo, 18 de setembro de 2011

A inesperada aparição do Logos no Evangelho de São João

A fé de Kien, tão inquebrantável como o seu receio ante uma humanidade que profanava livros, lançou-se por um terreno predilecto. Deplorava a fraqueza de Cristo, aquele estranho esbanjador. Multiplicação de pães e de peixes, curas e parábolas desfilaram pela sua mente e pensou na quantidade de livros que se teriam salvado com aqueles milagres. Sentiu que o seu actual estado interior se assemelhava ao de Cristo. Ele teria feito o mesmo em muitos casos, apenas com a diferença de que os objectos do amor de Cristo lhe pareciam aberrantes, tal como o daqueles japoneses. Como o filólogo ainda estava vivo nele, decidiu consagrar-se, quando o país voltasse à normalidade, a uma exegese textual completamente nova dos Evangelhos. Talvez Cristo não se referisse exactamente aos homens e uma hierarquia bárbara tivesse deturpado o sentido original das suas palavras. A inesperada aparição do Logos no Evangelho de São João dava pasto, precisamente porque a hermenêutica tradicional a atribuía a influências gregas, a diversas conjecturas deste tipo. Kien sentia-se suficientemente informado para fazer retroceder o Cristianismo às suas verdadeiras origens e, se bem que não fosse o primeiro a transmitir as autênticas palavras do Redentor a uma humanidade sempre disposta a ouvi-las, esperava, não sem certa convicção, que a sua interpretação fosse definitiva.

Elias Canetti, Auto-de-Fé
Trad.: Luís de Almeida Campos
Cavalo de Ferro

A slow, unbroken look

From time to time
Here on the agricultural
And poppy-dotted districts of the right-hand slope
Aeneas' thousands occupy his lords
Lighting each other's pipes besides their wheels
Reckon the battle has battles do
Found its own voice, that, presently far off
Blends with the sound of clear bright water as it falls
Over their covert's mossy heights;
A peaceful dust-free place circled by poplar trees,
Good cover and green shade.

Aeneas often sits apart.
He has his mother's face: white skin, green eyes,
A slow, unbroken look. And though there is
A touch to much of satisfaction in his confidence
As with the Prince your eyes incline to him.

Logue's Homer, All Day Permanent Red: War Music Continued, Faber and Faber, 2003.

Absolutamente Pornográphico

"Inside Job" de Charles Ferguson, 2010

sábado, 17 de setembro de 2011

Pecados Carnais

There are two people, each busy with books and paper and pen and ink, separately occupied. The pupil is THOMASINA COVERLY, aged 13. The tutor is SEPTIMUS HODGE, aged 22.

THOMASINA: Septimus, what is carnal embrace?

SEPTIMUS: Carnal embrace is the practice of throwing one's arms around a side of beef.

THOMASINA: Is that all?

SEPTIMUS: No. . . a shoulder of mutton, a haunch of venison well hugged, an embrace of grouse. . . caro, carnis; feminine; flesh.

THOMASINA: Is it a sin?

SEPTIMUS: Not necessarily, my lady, but when carnal embrace is sinful it is a sin of the flesh, QED. We had caro in our Gallic Wars – 'The Britons live on milk and meat' – ‘lacte et carne vivunt’. I am sorry that the seed fell on stony ground.

THOMASINA: That was the sin of Onan, wasn't it, Septimus?

SEPTIMUS: Yes. He was giving his brother's wife a Latin lesson and she was hardly the wiser after it than before.  I thought you were finding a proof for Fermat's last theorem.

THOMASINA: It is very difficult, Septimus. You will have to show me how.

SEPTIMUS: If I knew how, there would be no need to ask you.  Fermat's last theorem has kept people busy for a hundred and fifty years, and I hoped it would keep you busy long enough for me to read Mr Chater's poem in praise of love with only the distraction of its own absurdities.

THOMASINA: Our Mr Chater has written a poem?

SEPTIMUS: He believes he has written a poem, yes. I can see that there might be more carnality in your algebra than in Mr Chater's 'Couch of Eros'.

THOMASINA: Oh, it was not my algebra. I heard Jellaby telling cook that Mrs Chater was discovered in carnal embrace in the gazebo.

SEPTIMUS: (Pause) Really?  With whom, did Je1laby happen to say?

       (THOMASINA considers this with a puzzled frown.)

THOMASINA: What do you mean, with whom?

SEPTIMUS: With what? Exactly so. The idea is absurd. Where did this story come from?

[...]

THOMASINA:  I think you have not been candid with me, Septimus.  A gazebo is not, after all, a meat larder.

SEPTIMUS: I never said my definition was complete.

THOMASINA: Is carnal embrace kissing?

SEPTIMUS: Yes.

THOMASINA: And throwing one's arms around Mrs Chater?

SEPTIMUS: Yes. Now, Fermat's last theorem­–

THOMASINA: I thought as much. I hope you are ashamed.

SEPTIMUS: I, my lady?

THOMASINA: If you do not teach me the true meaning of things, who will?

SEPTIMUS: Ah. Yes, I am ashamed. Carnal embrace is sexual congress, which is the insertion of the male genital organ into the female genital organ for purposes of procreation and pleasure.  Fermat's last theorem, by contrast, asserts that when x, y and z are whole numbers each raised to power of n, the sum of the first two can never equal the third when n  is greater than 2.

       (Pause.)

THOMASINA: Eurghhh!

SEPTIMUS: Nevertheless, that is the theorem.


Tom Stoppard, Arcadia. Faber & Faber: 1993

Um movimento

See an East African lion
Nose tip to tail tuft ten, eleven feet
Slouching towards you
Swaying its head from side to side
Doubling its pace, its gold-black mane
That stretches down its belly to its groin
Catching the sunlight as it hits
Twice its own length a beat, then leaps
Great forepaws high great claws disclosed
The scarlets insides of its mouth
Parting a roar as loud as sail-sized flames
And lands, slam-scattering the herd.

'That is how Hector came on us.'

Logue's Homer, All Day Permanent Red: War Music Continued, Faber and Faber, 2003.

"Blue Velvet" de David Lynch, 1986

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

A Serious Cat II (os olhos tentativos)


Lucky Three (1997)


ELLIOTT SMITH “Lucky Three” (1997) por domino

a proa do coração

<Coro>

(cantando e dançando)

Possa eu entoar um †pungente†

grito de júbilo pelo homem

derrubado e pela mulher

que morre! Porquê esconder

o que, apesar de tudo, paira 390

diante da minha mente, onde da proa

do meu coração sopra furiosamente uma cólera

aguda, um ódio ressentido?


Ésquilo, Coéforas, vv. 386-393

Ladies rolling their eyes







































(Às vezes pergunto-me se seria possível que as Ladies de Atenas [não me interessa para isto saber se elas estavam sempre trancadas no gineceu] também revirassem os olhos quando o poeta Sófocles, já nonagenário - consta que morreu aos noventa e picos num naufrágio, passava por elas, distraído ou apressado, em direcção à ágora?)

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

sempre é uma companhia

Mas o velho Rata matara-se. Na aldeia, ninguém ainda atina ao certo com a razão que levou o mendigo a suicidar-se. Nos últimos tempos, o reumatismo tolhera-lhe as pernas, amarrando-o à porta do casebre. De vez em quando, o Batola matava-lhe a fome; mas nem trocavam uma palavra. Que sabia agora o Rata? Nada. Encostado à parede, de pernas estendidas, errava o olhar enevoado pelos longes. Veio o Verão com os dias enormes; a miséria cresceu. Uma tarde, lá se arrastou como pôde e atirou-se para dentro do pego da ribeira de Almancil.

Manuel da Fonseca, "Sempre é uma companhia", in O fogo e as cinzas

Catulo (os poemas da Ítaca 1)


Dando continuidade à campanha catuliana, brilhantemente lançada aqui, e que culminará com a publicação dos Carmina na Cotovia (está para breve, está para breve), recuperamos a tradução de seis poemas inicialmente publicada na Ítaca 1 (Março de 2010).

Aquiles segundo Logue (ou uma coisa do cara***)

Levam-lhes os púcaros.

«Pai amigo?»

Rei Nestor (pela sua vida):

«Já sabes porque estamos aqui.
Espera-nos a morte.
A multidão escolheu a escravatura.
O Micenas* admitiu que se lixou ao lixar-te.
Em recompensa oferece-te
O maior benefício de que se tem notícia.
Aceita-o e luta. De outro modo, Heitor há-de deitar fogo às naus
E depois matar-nos aleatoriamente.
És capaz de te lembrar do que disse o teu Pai
No dia em que Ájax e eu fomos perguntar
Se podias vir connosco a Tróia?
Que devias permanecer entre as lâminas onde a honra desponta.
E que, em segundo lugar, devias dar asas à raiva.
Espírito e beleza e força perfizeram em ti
Um poder tão extraordinário
Um Céu deixado vago podia oferecer-te o seu trono.
Pensa no que dirão os que vierem depois de nós.
Salva-nos do deus de Heitor, de Heitor e da força de Heitor.
Ponho-me de joelhos diante de ti, Aquiles.»

« ...Por favor... deixa-te de ameaços.
É verdade, já não falamos há uns tempos.»

Uma pausa.

«Tenho de admitir que tens coragem, pai amigo,
Em tratar-me como a um palerma.
Com Heitor lidarei como me apetecer.
Tu e os teus compatriotas hão-de morrer
Por causa de como o vosso rei me tratou.

«Durante cinco anos eu combati pelo vosso Rei
O meu registo: dez cidades costeiras e dez cidades do interior
Incendiadas até às fundações. Os seus homens, massacrados.
O seu gado e as suas mulheres foram-lhe dados.
Entre o que restou, Briseida a Bela, a minha ela rédea.
Não que eu o tivesse privado da cortesia dela.
Ela juntou-se à minha estirpe em reconhecimento da
Minha força, da minha coragem, da minha superioridade.
Cortesia vossa, meus senhores.
Não lutarei por ele.
Ele quer personalizar a minha perda.
Briseida tirada a Aquiles – prática standard:
Helena a Menelau – guerra.
Senhor Ocupado Ocupado, a construir a sua paliçada, a montar a minha ela,
A mulher que eu podia ter escolhido para administrar a minha casa,
Elevando-a ao estatuto de minha mulher.
Se o odeio? Sim, eu odeio-o. Odeio-o.
E se ele devia ter medo de mim? Devia.
Quero destruí-lo. Quero que ele sinta dor.
No corpo e entre as orelhas.
Tenho de admitir,
Algumas das coisas que disseste são verdade.
Mas vê o que ele me fez a mim. A mim!
O rei de quem a reidade dele depende!
Não lutarei por ele.
Escutando os vossos passos, pensei: até que enfim,
Os meus amigos vieram visitar-me.
Levaram o seu tempo, verdade –
Depois de ele ter levado a minha ela nenhum de vocês apareceu –
Agora, no entanto – evidentemente porque estão em sarilhos,
Sarilhos a sério – chegam como amigos,
E por vontade própria.
Mas não viestes aqui como amigos.
E não viestes por vontade própria.
Viestes porque o vosso rei vos disse para vir.
Viestes porque eu sou a sua última saída.
E, acidentalmente, a vossa última saída.

Finalmente ele oferece-me cenas.
E todos vós me oferecem os conselhos dele:
“Tem calma...
Tem cuidado com a língua...
Pensa no que o mundo vai dizer...”
Nenhuma menção ao modo como o vosso rei me tratou.
Nenhum sinal de amor por mim por trás das vossas lágrimas.
Não lutarei por ele.
Sou capaz de me lembrar mesmo muito bem
Do dia em que vocês, o par de grandes senhores, visitaram a casa do meu pai,
De como corri para vos acolher, de como tomei as vossas mãos –
Os homens mais grandiosos que alguma vez tinha visto:
Ájax, o meu primo combatente, forte, corajoso, sem medo de morrer;
Nestor, o rei da arenosa Pilos, a espada da sabedoria,
E naquele instante, quando todos já tinham comido e bebido à saciedade
E estava confirmado de que eu devia vir para Tróia,
Então o meu pai disse que sua senhoria sabe
Não só quando lutar, e quando ter tento na língua,
Mas também a diferença entre uma criança encolerizada
E senhores unidos pela honra.
Não lutarei por ele.
Há um rei para ser mantido. Vós sois os senhores que lhe pertencem.
Os meus poderes de combate provam a minha inferioridade.
O que quer que ele, por intermédio vosso, possa conceder
Eu tenho de o receber como um favor, não como um direito,
Voltai para ele com olhares de desalento, um tom suplicante,
Reconhecei as minhas transgressões – eu não
Aplaudi os dedos gordurosos dele na carne dócil da minha ela.
A minha mãe diz que eu tenho escolha:
Viver feliz como rei da terrinha pela aprovação;
Ou dar ao mundo um rumor duradouro do meu nome,
E morrer.
Acordem amanhã cedinho
Para me verem sacrificar ao Senhor Poseídon e levantar âncora.
Oh, sim, as oferendas dele:
“O maior benefício de que se tem notícia.”
Se ele pusesse o Céu na minha mão eu não o queria.
As suas oferendas exaltam-no a ele.
Também à sua criança.
Eu não quero deitar fora a rapariga, como se fosse lixo.
Ela é como eu. Má sorte ter amigos pobres.
Má sorte ter sua realeza como vossa majestade.
O meu pai há-de escolher a minha esposa.
A cada primavera uma dúzia dos reis locais visita-nos
E desfila as suas filhas nuas em redor do nosso pátio.
Alguma rapariga decente lá da terra. O valor do meu pai
É toda a riqueza que exigiremos.
Vós, gregos, não havereis de conquistar Tróia.
Estais desintegrados como força de combate.
Tróia é o vosso cemitério. Culpai o vosso Rei.
O homem que vós dizeis que fez tudo o que pôde.
O homem que admitiu que estava errado.
Mas ele não fez tudo o que podia.
E ele não admitiu que estava errado.
Ou não a mim.
Eu quero-o aqui, ao vosso Rei.
As suas armas tombadas de cada lado, os seus ombros para trás,
A anunciar, alto e a bom som, que errou ao levar a minha ela.
Pedindo desculpa por esse erro, a mim, o filho de Peleu.
Perante os meus seguidores, convosco, Pilos e Salamina**,
Creta. Esparta. Tirinte. Argos. Cálidon. As Ilhas, aqui,
em sentido, de cada lado dele.
Esta é a minha oferta. Aceitem-na ou morram.

‘Nestor pode passar cá a noite.
Tu, Ájax, querido primo, vai dizer ao teu rei o que eu disse.
De preferência, em frente de toda a gente.’»
Que respondeu,
Enquanto o meu Aquiles pegava na guitarra:

«Senhor, não era tão esmurrado com palavras
Desde que pela primeira vez chamei ao meu pai papá.»

Logue's Homer, Cold Calls: War Music Continued, Faber & Faber, 2005 (tradução minha).

* Agamémnon, rei de Micenas, aqui designado pelo seu topónimo.
**Pilos designa Nestor, terra de que o ancião era rei, Salamina designa Ájax - trata-se evidentemente de Ájax filho de Telamon, Creta Idomeneu, Esparta Menelau, Argos será uma alusão a Diomedes, os restantes topónimos designam outros tantos heróis.

Outra imagem

Recall those sequences
When horsemen ride out of the trees and down into a stream
Somewhere in Kansas or Missouri, say.
So - save they were thousands, mostly on foot - the Greeks
Into Scamánder's ford.

Coming downstream,
A smallish wave

That passes

But

Scamánders flow does not relapse.

Logue's Homer, Cold Calls: War Music Continued, Faber & Faber, 2005

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Uma imagem

While everywhere, my Diomed,

You beat your fellow Greeks
Back down the long incline that leads to Scamánder's ford,
Surely as when
Lit from the dark part of the sky by sudden beams,
A bitter wind
Detonates line by line of waves against the shore.

Logue's Homer, Cold Calls: War Music Continued, Faber & Faber, 2005

Um pátio nas traseiras

Qualquer escritor é útil ou nocivo, um dos dois. É nocivo se escrever uma porcaria, se deformar ou falsificar (mesmo que inconscientemente) para obter um efeito ou um escândalo, se se conformar, sem convicção, com opiniões em que não acredita. É útil se fizer aumentar a lucidez do leitor, se o desembaraçar da timidez ou de preconceitos, fazendo-o ver ou sentir aquilo que não teria visto nem sentido sem ele. Se os meus livros forem lidos e atingirem uma pessoa, uma que seja, e lhe trouxerem qualquer ajuda, nem que seja por um momento, considero-me útil. E, como acredito na duração infinita de todas as pulsões, e que tudo prossegue e se reencontra sob outra forma, essa utilidade pode estender-se muito longe no tempo. Um livro pode dormir cinquenta anos, ou dois mil anos, no canto de uma biblioteca, e de repente eu abro-o, e nele descubro maravilhas ou abismos, uma linha que parece ter sido escrita de propósito para mim. O escritor, nisso, não difere do ser humano em geral: tudo o que dizemos, tudo o que fazemos, produz mais ou menos efeito. É preciso tentar deixar depois de nós um mundo um pouco mais limpo, um pouco mais belo do que era, mesmo que esse mundo seja apenas um pátio nas traseiras ou uma cozinha.

Marguerite Yourcenar, De Olhos Abertos: Conversas com Matthieu Galey, Renata Correia Botelho (trad.), Relógio d'Água, 2011.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Classicismo e séc. XIX

Se por classicismo se pretende exprimir que um autor não escreve num estilo baixo ou cheio de acrobacias inúteis, então usemo-lo. Mas essa expressão, que me parece essencialmente escolar, parece oferecer um enterro de primeira classe a todos os escritores de suposto valor e que as pessoas não lêem. Também não vejo bem em que é que a minha «inspiração se aproxima dos autores do séc. XIX», que, de resto, são o contrário dos clássicos. Se se fala de Memórias - Souvenirs Pieux e de Arquivos do Norte, claro, o séc. XIX é o tema desses livros. Mas Adriano só pôde ser escrito depois de 1945, e A Obra ao Negro vinte anos mais tarde. Dito isto, repito que admiro infinitamente certos escritores do séc. XIX (...) Um Tolstói, um Ibsen, um Dostoievsky, um Nietzsche (e todos, é necessário dizê-lo, diferentes uns dos outros) surpreendem pelos seus incríveis recursos de entusiasmo e generosidade. Tem-se a impressão de que poderiam sempre dizer-nos mais do que aquilo que nos disseram. E o seu poder contestatário coloca-os numa eterna vanguarda.

Marguerite Yourcenar, De Olhos Abertos: Conversas com Matthieu Galey, Renata Correia Botelho (trad.), Relógio d'Água, 2011.

domingo, 11 de setembro de 2011

Adriano


















Os contemporâneos do jovem Adriano chamavam-lhe O Grego. Talvez nele também existisse a Espanha onde viviam os seus antepassados desde há vários séculos. É preciso ver que Adriano era andaluz, e é obviamente absurdo estar a imaginar, por falta de informação, aquela Espanha anterior a tudo o que sabemos dela. No entanto, um sotaque «espanhol» era reconhecível nele, pois em Roma troçava-se, por esse motivo, do jovem Adriano. E os seus pequenos versos ligeiros, quase sem peso, sobre a morte fazem-me pensar em certos aspectos do temperamento sevilhano, em que a ligeireza alterna com o trágico. Além disso, há aquele culto dos mortos, no sentido trágico, aquela familiaridade apaixonada com a morte. Pensar que apenas ele, sozinho, contrariamente aos costumes imperiais, fez o luto de Plotina, mulher do seu antecessor; que quis edificar ou reconstruir os túmulos de tantos grandes homens da Antiguidade; que mandou construir, para si próprio e para os seus sucessores, aquele enorme mausoléu, mais tarde Castelo de Sant' Angelo, que era um pouco o seu Escorial.
Não, Adriano é muito diferente do Romano habitual. No fundo, é mais austero, sóbrio, com aquela paixão pela caça e um gosto pelas fronteiras e pelos climas bárbaros. Nele coincidem o máximo refinamento helénico e o futuro, o mundo pós-romano que se aproximava. Se o comparar a Augusto, por exemplo, ou a Júlio César, vê-se logo a diferença. Não se parecem em nada: esses são italianos inteligentes.
(...)
A experiência humana de Marco Aurélio é profunda, mas não muito vasta. É a experiência de um moralista resignado, de um alto funcionário escrupuloso e resignado. É muito bonito mas não iria longe em matéria de variedade humana. Ele próprio disse tudo o que havia a dizer sobre o assunto. Coloca o arnês todas as manhãs e retira-o todas as noites. Tomou medicamentos contra as úlceras de estômago. Não seria suficiente para descrever um mundo, ao passo que Adriano, Varius multiplex...

Marguerite Yourcenar, De Olhos Abertos: Conversas com Matthieu Galey, Renata Correia Botelho (trad.), Relógio d'Água, 2011.

Candura

It is possible that the threesome in R898 is meant to end in the simultaneous penetration of the woman's vagina by one man and of her anus by another.

[Sir Kenneth Dover faz acompanhar esta frase, já de si pitoresca, pela seguinte nota:]

A common fantasy in ancient and modern pornography; how practicable, I confess I do not know.

Kenneth Dover, Greek Homosexuality, MJF Books, New York, 1989

sábado, 10 de setembro de 2011

A lei que sou

Há uma coisa que Elytis escreveu em Maria Neféli, um verso, dois talvez, em que se diz «A lei que sou não me submeterá.» Pensava que isto era: eu não me submeto à lei que sou. Isto é, eu escolho, a lei formula-se em função disso, em última análise, sou a minha lei, a minha própria norma. Tenho percebido que não é isso, é ao contrário, a lei que sou agora não pode aplicar-se sobre mim mais tarde, pode continuar a ser lei e eu falhar-lhe, ser então ánómós.

Pequena moeda

E, como também disse mais tarde, fiquei muito impressionada com a constatação de que tantos encontros na nossa vida, tantas relações humanas se baseiam simplesmente no facto de se dar uma pequena moeda ou uma nota a alguém, em troca de um selo ou de um jornal da tarde, sem nada conhecer daquela pessoa. Há em tudo isto um elemento puramente automático, que pode tornar-se às vezes romanesco, embora seja bastante raro, pois não se pensa nisto.

Marguerite Yourcenar, De Olhos Abertos: Conversas com Matthieu Galey, Renata Correia Botelho (trad.), Relógio d'Água, 2011.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

muitas coisas ariadne

chegámos à estação
os faróis
indicam o limite
para diante ergue-se o mar
vento ondulando
no verde
o sal dessa água
é uma rede que envolve os tornozelos

afastas-te muito rápido
com pés de fauno
mas há este instante na rapidez
em que ela é a mão cerrada sobre o ombro
o limiar da porta

coisas perdem-se ou são
um cerrar de dentes
mão fechada contra o ombro
os olhos absortos
lanternas de onde
a água pinga
ruelas que escreves
uma vez outra vez
volta atrás
de novo
imitando os movimentos do vento
tropeçando esse ar que corre
apaga-as em poeira
a essas ruas que
vão sendo moedas gastas
faces apagadas
nas mãos
uma impressão
que passa rápido

atirada para o cesto
a roupa despida é o fim do dia
e procuras-te no reflexo
mas sabes que só
a laje de mármore
partida
por insuspeita pancada cega
vem falar a tua língua

dancemos
por isso
em cacos

a certeza de que a nossa história
é um objecto
inacabado
que pertence à desordem onde
os pés pousam
aqui e agora as nossas
muitas luzes
serão traduzidas em estilhaços
simbolizadas
por jeans rasgados nos joelhos
essa canção que
na voz ténue do rapaz
te encontra à esquina
à espera
e rompe na noite
e morre
nas arcadas
volteando em torno
das grades azuis da primeira chuva

o que dizemos
incendeia-se nos candeeiros
respiração intermitente
e talvez se torne aos poucos
a chuva
que se esconde nos cântaros
deixados diante
de muros brancos azuis desolados

esses gigantes guardiões
de vasos de flores
que cedeste
ao sol ao frio
a um modo oscilante
de não voltar mais

os narradores
do teu passar desajeitado
traduzido apenas e trazido de volta
no mover-se
do rapaz de sapatilhas vermelhas
dançando na sala vazia

virá mais tarde esse porquê
perguntado baixinho
enquanto absorto róis as unhas

f. deixou junto à ponte os sapatos
e atravessou descalço
entrou no reno
com pequenos seixos contados
na mão
nunca adivinhou as margens

ferlinghetti
disse
cultivate dissidence and critical thinking

mas eu lembro-me antes de l.
a minha memória mais perene
é feita dessa rapariga
sozinha num quarto
lendo na pouca luz
a sua voz enchia tudo
ela nunca soube
eu ouvi-a encostada à parede
tentava seguir
esse murmurar
que era o meu próprio reno
um tempo que como água
não acabava
não podia acabar

ela não sabia
e era ariadne
luminosa ariadne
de verdade
com o seu fio luminoso
a que se prendia
uma tristeza de ser puxada
trazida contigo

mas naquelas horas
só existia o rapaz
que escapava intacto
do labirinto
espada ensanguentada na mão
um minotauro a menos
nas contas de fim do dia

os nossos heróis eram assim
estavam todos acima
das linhas de destruição
eram vagamente perfeitos
demasiado bonitos
um pouco mais que humanos
percebemos mais tarde
que não eram
assim tão dignos da nossa afeição

na luz acesa
veio devagar essa chuva
que te tracejava a cara
fora do desenho a lápis
intuímos que há este instante
no silêncio
em que nos tornamos
passamos à existência
na certeza dessa familiaridade
ligeiramente ameaçada
o instante em que não posso
saber mais nada de ti
envolvido na ordem fácil
que se esconde no gesto
de terminar o nó da gravata
há essa diferença mínima
a certeza de que não posso
saber mais de ti

pássaro

e espera silenciosa e terna
e a desarrumada ordem
do teu riso
onde todas as cores caiem certas
na combinação geométrica
que não adivinha essa ternura breve
essa que te sorri
como sorte
de um ponto acima

eu que só te podia seguir
até ao pátio interior
a partir destes labirintos de ruas
que lanternas de papel
acenderam
a rápida passagem entre sons
que traz de volta a música

essa rapidez
dúctil
rude
táctil
que nada
pode curvar

e sei que havia esta fronteira na tarde
onde silenciosamente te cercaram
os passos da chuva em torno dos alpendres
um relógio bate algures a hora
e tu tornas-te o gabriel de hill


esse
anjo sensato
que precipitando-se
arrasta consigo
em queda
a luz
isso que o
melhor poeta
aprendeu a definir
como
escuridão sensível

Tatiana Faia

Antiga Casa Faz Frio

Também a Praça das Flores
«é sempre a despedida da vida»
e eu, delta vez, não a convocarei,
Dona Benilde. Prefiro falar
de quem só apostava
no «tudo ou nada do amor»,
rendendo-se à música da cidade.

É uma estória mal contada,
obviamente. Apareceu-me
de casaco vermelho,
com três maços de cigarros
a brincarem-lhe nas mãos.
Perguntava a quem passava
onde ficava o Chiado,
enquanto a magreza dos seus ombros
incendiava a igreja do Loreto.
Os negros das obras respondiam-lhe
o melhor que podiam, esquecendo
por instantes os rabos e as mamas
que desciam apressadamente para o metro.
Apenas falou, nessa tarde, da crise
do PCP e de gravatas militantes.
Depois morreu, imaculado rasto de cinza
a perder-se no verde corrigido
deste restaurante, onde trapeiros
e limpa-chaminés pronunciam o seu nome.

A si, João César, daria todos os meus cigarros.
Mas agora, suponho, era coisa de pouca serventia.
O marinheiro da entrada manda-lhe saudades.
E olhe que a cozinha está melhor e o tinto
de Trancoso não provoca nem repulsa nem azia.
Mas vai ser tão frio, este Verão.

Manuel de Freitas, Blues for Mary Jane, &etc, Lisboa, 2004 apud AAVV, Poemas com Cinema, Assírio & Alvim, Lisboa, 2011

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

o fim dos filhos de Sejano segundo Tácito

It was decided after this that measures should be taken against the remaining children of Sejanus (though the anger of the plebs was vanishing and many had been assuaged by the earlier reprisals). So thesewere transported to prison, his son, intuiting the inevitable, and a girl so unaware that she asked frequently for what felony and to what place she was being dragged off: she would not do it again, she said, and could be admonished by a child's beating. Authors of the time transmit that, because it was held to be unheard of for a virgin to have the triumviral reprisal inflicted on her, she was violated by the executioner alongside the noose; then, their throats crushed, the bodies despite their tender ages were throw onto the Gemonians.

Tácito, The Annals, 5.9, Hackett, 2004, tradução de A. J. Woodman

Morto

Sei que caio no inexplicável quando afirmo que a realidade - essa noção tão flutuante -, o conhecimento mais exacto possível dos seres, é o nosso ponto de contacto e a nossa via de acesso às coisas que ultrapassam a própria realidade. No dia em que nos distanciarmos de realidades muito simples, fabulamos e caímos na retórica ou num intelectualismo morto.

Marguerite Yourcenar, De Olhos Abertos: Conversas com Matthieu Galey, Renata Correia Botelho (trad.), Relógio d'Água, 2011.

domingo, 4 de setembro de 2011

Lembranças de Cartago

Pronto. Deste manto nascem
as chuvas, os olhos compósitos,
a restante confraria dum animal
de Cristo brilha no fictício
cristal da ponte.
Mas o semblante, atento
às concubinas, ao orifício
sombrio dos espectáculos,
não é teu.
O báculo serve o gosto
mordaz em anéis sem sombra,
a luz contaminada pelo conflito
sua semelhança com a crina dos
espelhos.

Gil de Carvalho, Viagens: 1978-2008, Assírio & Alvim, 2008.

sábado, 3 de setembro de 2011

Athanor

1

Veio com um remo pela noite.
Não lhe conheci as mãos.
Eram dum amarelo capaz
aptas nos orifícios da transmutação.
Subi as lentas canas de qualquer olhar.
O pequeno edifício,
oscilou,
na ágata fresca da margem.

2

Não é da embarcação nem deste corpo
nem talvez do fumo que a montanha
escuta, o braço, este.
Bate no mar,
é tudo.
Vou ter contigo.
Uma mesma que seja, argola
escura, à volta da carne não
permite à ilha esconder
o ouro da chegada.

Gil de Carvalho, Viagens: 1978-2008, Assírio & Alvim, 2008.

Rosa choque

Clinamen

Retorno

Vemos de novo, os caminhos arpoados
na falange do sexo, o trevo, enforcado
nas folhas, a pedra onde perdes os pés.

Só o que seca, oculto,
no interior do crânio sangra,
como antigamente, no ar,
os homens
preferem, na rota do âmbar,
os dias e noites, dispersos
o colar preso no brilho
de um músculo roubado à sombra.

Gil de Carvalho, Viagens: 1978-2008, Assírio & Alvim, 2008.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Lucanus Cervus

A tua boca
é uma curta espera do mundo,
esconde, dos fenómenos, a escada.
O teu voo
outra vez entre imagens uma certa
espera que finda.

Gil de Carvalho, Viagens: 1978-2008, Assírio & Alvim, 2008.

As ânsias de açoitar carne feminina

Desde a morte da filha, que era tuberculosa, não tinha voltado a bater numa mulher. Vivia sozinho. A sua profissão atarefada não lhe consentia tempo para andar com mulheres, incapacitando-o, além disso, para fazer conquistas. Às vezes deslizava a mão por entre a saia de uma criada e beliscava-lhe a nádega, mas fazia-o com tanta seriedade que deitava completamente por terra as suas já escassas possibilidades de êxito. Nunca chegava às palmadas. Havia anos que andava ansioso por açoitar à sua vontade carne feminina.

Elias Canetti, Auto-de-fé
trad.: Luís de Almeida Campos
Cavalo de Ferro

Quarto Crescente

O que Akhbar disse a Naiq Gopaul

1

Os navios conspurcam a cidade, canta
no meu rio, parede alta
será teu o braço a virilha do
tirano, a duração das cheias
no colete azul das raparigas.

Gil de Carvalho, Viagens: 1978-2008, Assírio & Alvim, 2008.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Catulo

É de ler todos os dias.

Sem nome #5

VÁRIA LITERATURA

Dia de festa, existir simplesmente
ter confiança em tudo, ó mundo minha mãe,
lareira prometida nunca alumiada
e tantos gestos empilhados e tijolos
E sobre tudo o resto o vão bocejo e não valer a pena

Ser erva entre o milho e verde vítima do vento
ceifar-nos rente algum olhar de esquecimento
A morte ainda é uma forma eficaz de adormecer
e a virtude é o caminho para quem
não tem outro remédio nesta vida
Mulher como melhor morrer nascer cantar
Itália onde tombar como em qualquer lugar
chorar o mínimo cadáver que passar
e não desperdiçar os dedos pelas coisas
Fazer de um jardim quanta vida se quer
ser o maior responsável por
- eis algumas vantagens da propriedade horizontal


Ruy Belo, Boca Bilingue, Editorial Presença, Lisboa, 1997.

Jonathan Safran Foer, Comer Animais



Um dos livros mais importantes que li. A recensão de J. M. Coetzee é bastante eloquente: "Se alguém continuar a consumir os produtos da indústria depois de ler o livro de Foer, poderá dizer-se que não tem coração ou que é insensível à razão, ou ambos."