terça-feira, 31 de maio de 2011

Editorial da Ítaca 3

Eis o editorial para este número.

Dicionário das Distâncias

Paulo Rodrigues Ferreira tem um novo livro, Dicionário das Distâncias. Ainda não lemos, mas não importa, recomendamos na mesma. Não tanto pela vontade indolente e ligeiramente palerma de recomendar um colaborador, quanto por respeito pelo seu trabalho de escritor. Mais informações aqui.

A sul de nenhum norte 2

Está aí o número dois da A Sul de Nenhum Norte. E a capa é '5os (inveja)!

For art really

We gazed at each other for a long moment of silence, with emotion. Both knew that the silence we observed was one of pain for France, an event which symbolized all too clearly the psychic collapse of Europe itself. We were like mourners at an invisible cenotaph during the two minutes' silence which commemorates an irremediable failure of the human will. I felt in his handclasp all the shame and despair of this graceless tragedy and I thought desperately for the phrase which might console him, might reassure him that France itself could never truly die so long as artists were being born into the world. But this world of armies and battles was to intense and too concrete to make the thought seem more than of secondary importance - for art really means freedom [...]

Lawrence Durrell, "Clea", The Alexandria Quartet, Faber & Faber, 2009 (primeira publicação: 1960)

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Lançamento da Ítaca 3




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manuscritos de outono

Título roubado a Tasos Leivaditis,
o poeta que falava da odisseia que vive cada poeta ao
escrever o mais pequeno poema e cuja definição
de vida era instante luminoso.



I

nunca aprenderá os princípios da arte por impaciência
(não por surdez) espera que te vás aproximando
até à proximidade evidente até que te escute
subir na própria voz como uma cadência
o copiar de um velho hábito que te visitasse
como um remorso trabalha num espaço
de teia em desassossego espécie de loja
de penhores de um corrector de apostas
demasiado desorganizado e pouco ganancioso
mas cederá a pouco e pouco pequenos objectos
de valor simbólico que não importa aqui enumerar

II

bebemos o nosso café em copos de papel
temos nos bolsos luas de papel barcos de papel
se no princípio era o rio talvez eu te apanhasse
na curva da voz mas nunca ouvi dizer que a
comunicação no nosso século se fizesse via
barcos de papel seremos breves e silenciosos
como conspiradores falaremos baixo semi-
cerrando os olhos o argumento desperdiçado

o que concedes como no verso de pavese é um velho
remorso e também nós desceremos ao remoinho mudos

III

estamos condenados a imaginar essas antecâmaras
as suas horas de vigílias as suas esperas o daimon
que habita o intervalo entre o pensamento e o acto
podíamos ter sido como na grécia antiga poetas
a soldo ao serviço de algum déspota mais modesto
mas seria uma vida triste de que nos cansaríamos
depressa afinal não tanto ao contrário de píndaro

IV

um pouco absortos diante da banca de tabaco
e jornais até que te escute subir na própria voz
como quem subisse por uma escada que
desembocasse num pátio onde batesse o sol
e vista de longe a tua sombra passasse na parede
branca reflectida um instante submersa na distracção
do tempo que faz das circunstâncias mais alegoria
de si mesmas do que de qualquer outra caverna

V

ainda que muitas vezes te tome o desejo
de reclusão persianas corridas luzes apagadas
portas fechadas o livro no colo meu pobre
escriba os óculos presos por corrente ao peito
o murmúrio em penumbra de blues como
a impressão concreta definitiva de submergir
num modo de surdez que outra coisa não é
que uma calma duramente aprendida aquela
que não pode vir de uma imobilidade indolente

VI

uma coisa duramente aprendida essa
de nos manietarmos quando queríamos
gritar de taparmos a boca com a mão
de cerrarmos dolorosamente os olhos as mãos
de raiva e despeito tu caminharás
arduamente por esse corredor eu hei-de
carregar comigo o teu grito como aqueles
atletas da grécia a tocha de olímpia e não
me importa se não chegarmos a lado nenhum
se a memória de ti se perder se todas as tuas
palavras pássaros de fumo no vento não
importará porque eu ouvi-te desse lado do
espelho e o teu eco dolorosa pegada
durando contra o rumor de sinos de outono no ar

Tatiana Faia

domingo, 29 de maio de 2011

Time, said Austerlitz, was by far the most artificial of all our inventions

Time, said Austerlitz in the observation room in Greenwich, was by far the most artificial of all our inventions, and in being bound to the planets turning on their own axis was no less arbitrary than would be, say, a calculation based on the growth of trees or on the length of time it takes a piece of limestone to disintegrate, quite apart from the fact that the solar day which we take as our guideline does not provide any precise measurement, so that in order to reckon time we have to devise an imaginary, average sun which has an invariable speed of movement and does not incline towards the equator in its orbit. If Newton thought, said Austerlitz, pointing through the window and down to the curve of the water around the Isle of Dogs as it slipped by in the last of the daylight, if Newton really thought that time was a river like the Thames, then where is its source and into what sea does it finally flow? Every river, as we know, must have banks on both sides, so where, seen in those terms, where are the banks of time? What would be this river's qualities, qualities perhaps corresponding to those of water, which is fluid, rather heavy, and translucent? In what ways do objects immersed in time differ from those left untouched by it? Why do we show the hours of light and darkness in the same circle? Why does time stand eternally still and motionless in one place, and rush headlong by in another? Could we not claim, said Austerlitz, that time itself has been non-concurrent over the centuries and the millennia? It is not so long ago, after all, that it began spreading out over everything. And is not human life in many parts of the earth governed to this day less by time than by weather, and thus by an unquantifiable dimension which disregards linear regularity, does not progress constantly forward but moves in eddies, is marked by episodes of congestion and irruption, recurs in ever-changing form, and evolves in no one knows what direction? Even in a metropolis ruled by time like London, said Austerlitz, it is still possible to be outside time, a state of affairs which until recently was almost as common in backward and forgotten areas of our own country as it used to be in the undiscovered continents overseas. The dead are outside time, the dying and all the sick at home or in hospitals, and they are not the only ones, a certain degree of personal misfortune is enough to cut off from the past and the future. In fact, said Austerlitz, I have never owned a clock of any kind, a bedside alarm or a pocket watch, let alone a wristwatch. A clock has always struck me as something ridiculous, a thoroughly mendacious object, perhaps because I have always resisted the power of time out of some internal compulsion which I myself have never understood, cutting myself off from so-called current events in the hope, as I now think, said Austerlitz, that time will not pass away, has not passed away, that I can turn back after it, and when I arrive I shall find everything as it once was, or more precisely I shall find that all moments of time have co-existed simultaneously, in which case none of what history tells us would be true, past events have not yet occurred but are waiting to do so at the moment when we think of them, although that, of course, opens up the bleak prospect of everlasting misery and never-ending anguish.

WG Sebald. Austerlitz. Anthea Bell (trad). Penguin: 2002

Tiens ma main


La nuit, quand la lune se détacha enfin dans le ciel devenu tout à fait obscur, Monsieur de Jaume passa par le jardin, grimpa jusqu'à la terrasse et toqua à son carreau. Elle ouvrit la fenêtre. Il n'y avait pas de lumière dans la chambre et il s'en étonna. «Attends, luit dit-elle. J'ai préparé une mise en scène pour te donner à voir mon ventre. Consens à l'obscurité pour l'instant. Tiens ma main. Je vais te guider.»


Pascal Quignard, La Frontière, Folio, 2002 (1.ª ed. 1994)

São Paulo pregando em Éfeso



Eustache Le Sueur, 1649

Ascenseur pour l'échafaud, 1958

sábado, 28 de maio de 2011

Gato com caixa de chá

de "tercetos do aleijadinho" (7)

ele dorme, pobre ceifeiro, quando
a goiva e o formão
lhe encontraram

o corpo circunscrito sob
o lenho supérfluo.
desbastando-o

a mão obediente
seguia o intelecto
ao talhar-lhe outro reino

que é da serenidade
deste mundo, pátria às vezes
sensível, melhorável.

dorme no seu anonimato, não
vai enlevado para
parte nenhuma

seu corpo se fez sono
e deus, ou seja,
a palavra poética

ao fim de tudo, é uma
questão de técnica
e de melancolia

Vasco Graça Moura, Artes Poéticas, Edições Asa, 2002

Suave

Society

The artist's work constitutes the only satisfactory relationship he can have with his fellow-men since he seeks his real friends among the dead and the unborn. That is why he can't dabble in politics, it isn't his job. He must concentrate on values rather than policies. Today it all looks to me like a silly shadow-play, for rulling is an art, not a science, just as society is an organism, not a system.

Lawrence Durrell, "Mountolive", The Alexandria Quartet, Faber & Faber, 2009

dá-me a linguagem

dá-me a linguagem
do centro das pedras
aquela secura
a clivagem certa

dá-me os rebordos
cortantes das pedras
seu voo ofensivo
o fácil arremesso

dá-me a centelha
da pele das pedras
aquela dureza
com que são objectos

Vasco Graça Moura, Artes Poéticas, Edições Asa, 2002

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Sem nome #2

Assim, há trinta e cinco anos que precipito os pacotes numa situação desesperada, risco os anos, os meses e os dias, contando quanto falta para nos aposentarmos, a minha prensa e eu; todas as noites trago, na minha pasta, livros para casa, e o meu apartamento, num segundo andar em Holesovice, está repleto de livros, livros apenas: a cave está cheia e o alpendre já não chega, a cozinha, a despensa e a retrete estão cheias, apenas o caminho para a janela e para o fogão estão livres, na retrete apenas há espaço para me poder sentar; por cima da sanita, à altura de um metro e meio já há traves e pranchas e em cima delas, até ao tecto, erguem-se os livros, quinhentos quilos de livros; chega um único movimento desajeitado ao sentar-me, um levantar imprudente, para tocar na trave mestra, e meia-tonelada de livros se precipitará sobre mim e me esmagará com as calças descidas. Mas como aqui já não se consegue acrescentar nem um só livro, assim, no quarto, em cima de duas camas juntas, mandei pôr traves e pranchas em forma de baldaquim, de um dossel de cama, sobre as quais estão arrumados livros até ao tecto; trouxe duas toneladas de livros para casa durante trinta e cinco anos, e, quando estou a adormecer, duas toneladas de livros como uma falena de dois mil quilos pesam sobre os meus sonhos. Às vezes, quando me viro inadvertidamente ou grito e me agito ao dormir, ouço, horrorizado, como os livros escorregam; chega apenas um leve toque de joelho, talvez apenas um grito e como uma avalanche tudo se precipitará sobre mim, uma cornucópia cheia de livros precisos cairá dos céus sobre mim e esmagar-me-á como um piolho.


Bohumil Hrabal, Uma Solidão Demasiado Ruidosa, Edições Afrontamento, tradução de Ludmila Dismánova e Mário Gomes, 1992.

"Malèna" de Giuseppe Tornatore, 2000


Um filme que começa assim:«Tinha doze anos e meio quando a vi pela primeira vez. E mesmo que me enganasse, lembro-me bem. Nesse dia Mussolini declarou guerra a França e a Inglaterra... e eu recebi a minha primeira bicicleta.»

As ruas de todos os dias (4)

A revista que (quase) mudou o mundo



























Molla Nasreddin. Ler aqui e aqui.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Catulo ao jantar

Para que não digam que não alimento os meus sobrinhos com os clássicos.

This is not the end of the book



Colheita de hoje, na FNAC, para ler com devoção nos próximos dias. O texto da badana reza assim:

‘The book is like the spoon: once invented, it cannot be bettered.’ Umberto Eco

These days it is almost impossible to get away from discussions of whether the ‘book’ will survive the digital revolution. Blogs, tweets and newspaper articles on the subject appear daily, many of them repetitive, most of them admitting they don’t know what will happen. Amidst the twittering, the thoughts of Jean-Claude Carrière and Umberto Eco come as a breath of fresh air.
There are few people better placed to discuss the past, present and future of the book. Both avid book collectors with a deep understanding of history, they have explored through their work the many and varied ways ideas have been represented through the ages. This thought-provoking book takes the form of a long conversation in which Carrière and Eco discuss everything from what can be defined as the first book to what is happening to knowledge now that infinite amounts of information are available at the click of a mouse. En route there are delightful digressions into personal anecdote. We find out about Eco’s first computer and the book Carrière is most sad to have sold.
Readers will close this entertaining book feeling they have had the privilege of eavesdropping on an intimate discussion between two great minds. And while, as Carrière says, the one certain thing about the future is that it is unpredictable, it is clear from this conversation that, in some form or other, the book will survive.

"Il Conformista" de Bernardo Bertolucci, 1970


A alegoria da caverna, segundo Bertolucci.

As ruas de todos os dias (3)

de nó cego, o regresso (XVII)

como meter o mundo
num poema? traduzir-lhe
a áspera realidade, a doçura
intranquila?

como meter o trabalho
dos homens, os seus dias,
nessas escassas linhas,
seus ócios, seus espelhos,

seus desvarios, suas
catástrofes de amor?
como meter a morte
nas palavras?

só que uma coisa bela
é para sempre uma alegria inquieta.

Vasco Graça Moura, Artes Poéticas, Edições Asa, 2002

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Le Bourgeois Gentilhomme - Acto I



Como é sabido, a generalidade das peças de Molière era acompanhada de música, com longas partes dançadas e cantadas, à maneira do teatro antigo. Infelizmente a quase totalidade das representações modernas amputa o espectáculo ao ignorar estas secções.

Neste caso trata-se do Le Bourgeois Gentilhomme, que mereceu, há poucos anos, esta soberba reconstituição, com a música original de Lully, que colaborava com Molière regularmente, e uma reconstituição da pronúncia francesa seiscentista. É imperdível.

Recomendo como um dos momentos musicalmente mais interessantes a Marcha para a Cerimónia dos Turcos

"In the mood for love"



In the mood for love, como esta cena demonstra, não é um filme, é um poema.

Parabéns, Relógio d'Água!



Este clássico de Steiner, que já vai na segunda edição (lol!), é sem dúvida o livrinho com mais gralhas que alguma vez li. Entre as inúmeras maravilhas que o Sr. leitor encontrará — e fruirá mais ainda desta obra em todos os aspectos excepcional se souber umas palavrinhas de grego — recordo com assombro um -lhe hifenizado: -lh hífen e. Parabéns, Relógio d'Água, desta vez vocês superaram-se!
Nesta minha lista pessoal consta ainda uma menção honrosa para os «russos» da Presença (todos, sem excepção). Mas isso já é demais para um só post.

As ruas de todos os dias (2)

The Thought-Fox*

I imagine this midnight moment's forest:
Something else is alive
Beside the clock's loneliness
And this blank page where my fingers move.

Through the window I see no star;
Something more near
Though deeper within darkness
Is entering the loneliness:

Cold, delicately as the dark snow
A fox's nose touches twig, leaf;
Two eyes serve a movement, that now
And again now, and now, and now

Sets neat prints into the snow
Between trees, and warily a lame
Shadow lags by stump and in hollow
Of a body that is bold to come

Across clearings, an eye,
A widening deepening greeness,
Brilliantly, concentratedly
Coming about its own business

Till, with a sudden sharp hot stink of fox,
It enters the dark hole of the head.
The window is starless still; the clock ticks,
The page is printed.

Ted Hughes, The Thought-Fox, Faber & Faber, 1995

*Não é um poema, é um monumento.

terça-feira, 24 de maio de 2011

"The apartment" de Billy Wilder, 1960













Qualquer coisa numa ou noutra das heroínas de Billy Wilder (Ariane; Fran) que me lembra a metamorfose de Céfalo e Prócris. Todo o seu engenho afinal vulnerabilidade sem que elas o saibam. Talvez o embrião do melodrama enquanto género estivesse em Ovídio.

As ruas de todos os dias (1)

Over the back

reverts to nothing at all/ to this long pelt over the back of a chair

Ted Hughes, "An Otter", The Thought-Fox, Faber & Faber, 1995

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Dos gritos da ignorância


Frei António Baptista Abrantes (1737-1813), Instiuições da Lingua Arabiga, Lisboa, 1774

"In the mood for love" de Wong Kar Wai, 2000

Biological memory

telling yourself it is something you have forgotten, it is in the tip of your tong, the edge of your mind. For the life of you cannot remember what it is, the name, the town, the day, the hour... the biological memory fails.

Lawrence Durrell, "Mountolive", The Alexandria Quartet, Faber & Faber, 2009

"In the mood for love" de Wong Kar Wai, 2000

domingo, 22 de maio de 2011

Drunken irony

Dancing again he said to her, but with drunken irony: "Mélissa, comment vous défendez vous contre la foule?" Her response, for some queer reason, cut him to the heart. She turned to him an eye replete with all the candour of experience and replied softly: "Monsieur, je ne me défends plus". The melancholy of the smiling face was completely untouched by self-pity.

Lawrence Durrell, "Mountolive", The Alexandria Quartet, Faber & Faber, 2009

Por momentos este passo lembrou-me aquele verso de Franco Alexandre, «verdade, somos iguais». Mas Pursewarden e Melissa são os dois opostos, o completamente diferente, et pourtant, encontram-se. E quando se encontram dançam.

Amanhã

sexta-feira, 20 de maio de 2011

fragmento

I lie down. I become darkness.

Ted Hughes, “Gog”

I

um sinal por que o reconhecesse um sinal combinado
a nota mais aguda de um assobio três pequenas
pedrinhas lançadas à janela batendo ao de leve
como passos enterrando-se na noite na sua areia
movediça um sussurro pela calada e a imbecilidade
do namorado que ouvindo mal te pedia que repetisses
o segredo sussurrado ao ouvido nós vamos aos recantos
que o tempo mais afundou na memória e eles são
esta espécie de espelhos quebrados meio enterrados
na areia de que só chegamos a ver o fragmento do fragmento

II

tu regressas com a queda do outono as primeiras
aparas de madeira desse boneco esculpido a canivete
cachimbos acesos para conversas em alpendres
tu eras disponível que não é o mesmo que fácil
a mão distraidamente pousada sobre a mesa
semi-aberta assim nenhum gesto ficava fora
do teu alcance a possibilidade de tudo em inércia
descíamos por jardins cobertos de nevoeiro
despidos de cor as nossas sombras coladas
aos charcos do entardecer assim guardamos
as horas repetimos os mesmos gestos enterras
a mão dentro do casaco à altura do peito

III

qualquer coisa no gesto que te denunciasse
que me deixasse ver-te e não importa o quê
o mau hábito de estudar avidamente as pessoas
ansiosamente como gente que não pode deixar
de roer as unhas compulsivamente testar
as consequências inúteis de cada aposta mental

IV

somos o esboço de outras imagens
com esforço desarrumamos a sala
trocamos o lugar das cadeiras quando
eu regressar já será muito tarde de cansaço
terás adormecido o lento cerrar do escuro
em redor das pálpebras ao ouvido hei-de
sussurrar-te que não és hamlet que este
não é o reino da dinamarca talvez me
respondas com uma ponta de tristeza
na voz uma pequena mácula que guardarei
para mim que permanecerá entre nós
em suspenso é verdade temo-nos usado

V

como o ruído do oceano preso nos recessos
do búzio girando em torno preso um pequeno
mar interior encurralado golpeia-te com uma força
incisiva destruidora silenciosa e admiras
a sua teimosia a linha por que se conduz
e em que pára como um adversário temível
e excelente cuja animosidade te honrasse
os nossos mares em miniatura e as suas marés
obliterados em bilhetes para viagens
indo connosco onde quer que vamos fragmentos
os seus sinais as frases que sublinhamos
em livros apontamentos a vermelho à margem

VI

a caneta há-de tornar a oscilar-te nas mãos
tentarás prender tudo aquilo de que desististe
como o vento se prende nas varandas às cordas
de roupa às flores nos vasos ao baloiço do jardim
a presença que só existe no ruído porque o silêncio
nos torna unos com a noite de dia tornaremos
a contar-nos mutuamente um do outro teremos
visto o rosto o que diremos será como a energia
dispensada no desarrumar da sala a sucessiva
mudança de lugar que podemos impor aos objectos
mas somos imóveis resolutos nas nossas vontades
a nossa imobilidade coincide com a noite e o silêncio
se o tema da arte for a vida estaremos para sempre
presos às pequenas diferenças iniciais às variações
infinitesimais de cor ou luz nas coisas aos pormenores
que pudessem definir a nossa corrida por linhas
rectas os nossos incompletos labirintos de creta

Tatiana Faia

Germinal Silence

A tremendous silence fell - the silence which follows some great perfomance by an author or orchestra - the germinal silence in which you can hear the very seeds in the human psyche stirring, trying to move towards the light of self-recognition.

Lawrence Durrell, "Mountolive", The Alexandria Quartet, Faber & Faber, 2009

Become

I lie down. I become darkness.

(É um verso de Ted Hughes, não me lembro bem em que poema.)

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Adolescencia

Vinieras e te fueras dulcemente,
de otro camino
a otro camino. Verte,
y ya otra vez no verte.
Pasar por un puente a otro puente.
—El pie breve,
la luz vencida alegre.—

Muchacho que sería yo mirando
aguas abajo la corriente,
y en el espejo tu pasaje
fluir, desvanecerse.


Vicente Aleixandre, Nombre Escondido [Antología esencial 1928—1984], Editorial Renacimiento, 2009.

Ainda sobre o post anterior

Ou transversal a este.

Leitor

Era miúda quando comecei a ler livros. Sete ou oito anos, à volta disso. Mas acho que só nos começamos a tornar leitores uns anos mais tarde. Tinha uma amiga que me dizia que tinha lido todo o Faulkner aos onze anos, todo o Dostoiévsky entre os treze os dezasseis. Este é um caso excepcional mas também não me parece um bom exemplo para aquilo que seria a formação de um leitor regular. Não sei qual a utilidade de uma criança ler O Som e a Fúria aos onze anos. Aos vinte e dois acredito que muita coisa me tivesse escapado. Muitíssima mesmo.
De um livro guardamos o que nos impressiona e o que nos impressiona é regra geral aquilo que é muito próximo da nossa experiência de vida à data. O que há em O Som e a Fúria que pudesse levar uma criancinha a identificar-se com ele? Estou em crer que quase nada. Há pouco estava a ler este artigo.
Dar livros infantis a miúdos de famílias com rendimentos escassos. Isto parece um pouco fora do âmbito daquilo para que a minha argumentação parece estar a inclinar-se, mas não é. As nossas escolas não formam bons leitores e não sei porquê (sobre este assunto cf. o aluno mediano de Letras, onde por definição deviam estar os leitores, os leitores profissionais se assim quiserem e o que quer que isso seja, e perguntar-lhe que último livro leu e o que achou dele). É urgente criar um potencial de imaginação, desenvolvê-lo atentamente e de forma inteligente e orientada. Estou em crer que a imaginação é o capital que nos resta, para não dizer a última coisa infinita. Quando até nisso se falha...

quarta-feira, 18 de maio de 2011

O fogo

O mesmo ódio, o mesmo ferrete. Marcar as reses, dizem eles. Esquecer a manada solta através dos prados. Criar o animal doméstico, a paciência que se ouve nos provérbios. E a nossa memória (ruminada) de chifres contra chifres? Querem lá saber. O fogo continua: nas cozinhas, nas matanças festivas. Até que surge este desenho. Francamente. Não nos poupa as chamas (reacende-as) e os carneiros têm figura de gigantes. Qualquer dia, a canga (a paciência) acaba. Esperança, vai havendo.

Carlos de Oliveira, Finisterra

"The Long Goodbye" de Robert Altman, 1973

Philip Roth

Philip Roth and the Booker judge.

Jardim

Rue Jean Rieux

Quem me leva penetra na neblina que perde
às vezes nossos passos, nossos lábios confunde
com um bafo de outono e descobre a prata
regelada da relva e o ouro das folhas.
Sem ninguém o jardim range, com seu frio.
Há uma árvore, de súbito, que estala em fruto e luz?
À espera de um deus desconhecido, alguém
esta noite, comigo, morrerá corpo a corpo.

María Victoria Atencia, Antologia Poética, José Bento (trad.), Assírio & Alvim, 2000

Sr. Mendonça

Por vezes atraso-me um pouco para ir beber café e quando chego lá abaixo fico sentada ao pé do Sr. Mendonça e da esposa, um casal de reformados. O Sr. Eliseu, empregado do café (ficaria bem se eu agora acrescentasse há mais de quarenta anos, mas a verdade é que não faço a mínima ideia e não quero atraiçoar o Sr. Eliseu), atende-os quase sempre primeiro, o que só me chateia quando estou com pressa, ou quando cheguei primeiro que eles e não trouxe um livro ou outra companhia e estou a reparar nesses pormenores.
Como a maior parte dos homens em Babilónia, o Sr. Mendonça foi primeiro procônsul e depois escravo. A isto talvez importasse acrescentar que quase que posso apostar que o seu proconsulado se deu algures até um ano antes da segunda metade da década de setenta do século passado e que, segundo ele, a escravatura se deu depois. Digo isto por causa de uma ou outra diatribe saudosista a atirar para o neflibata em que ele às vezes se lança, sobretudo quando na mesa atrás dele se senta um animado grupo de antigos profissionais liberais, hoje em dia todos reformados, que à data do proconsulado do Sr. Mendonça deviam estar todos do outro lado da barricada. Anyway.
O Sr. Mendonça hoje não está em dia de diatribes e dedica-se a outro costume, o de ler A Bola. E o que ele lê ostensivamente não são as notícias de desporto mas a secção de anúncios ordinarotes do jornal. A esposa, que está com o Correio da Manhã em mãos, mas claramente indignada com o marido, muda também para a página equivalente no jornal dela. Vai daí, ele põe um ar escandalizado e diz-lhe que uma mulher séria e uma mãe de família não lê coisas daquelas. Eu bebo o meu café e desando.
Há estas pessoas que de vez em quando vejo juntas, que calculo que estão juntas há décadas, que não consigo perceber se se enervam mutuamente porque já não têm nada a dizer uma à outra mas permaneceram juntas pelo hábito e agora o desporto que lhes resta é envenenar as respectivas existências ou se se enervam mutuamente porque ainda gostam bastante uma da outra.

Manuel António Pina tem um gato
















E venceu o Prémio Camões.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Semântica

De passagem, ela olhou fixamente o hóspede estrangeiro, que comia na mesa ao lado, solitário: ele baixou a cabeça num cumprimento civil. Diziam-no erudito, um linguista, e era algo suspeito. Inglês. Mas tinha notas! A finlandesa passou, e ele seguiu-lhe com olho frio de conhecedor os movimentos do châssis rolante. Nem só de Semântica vive o homem.


José Rodrigues Miguéis
, Nikalai! Nikalai!, Editorial Estampa, 2001.

O desprezo

Quando li o Satyricon bati-me com aquela desilusão um bocado cliché de aquilo nada ter que ver com o filme de Fellini. Aquilo que mais me enterneceu em Petrónio foi uma coisa que ouvi dizer a um professor e que de facto está patente no texto, ele é um autor incansável na contemplação que faz do espectáculo do mundo. Porque o mundo para ele é isso, um espectáculo. A contemplação crítica (acrescentaria o aluno diligente no rotineiro teste) do espectáculo do mundo.
Outra coisa que também estava em Petrónio foi uma frase que encontrei escrita anos mais tarde num livro de Agustina Bessa-Luís: «tinha pela humanidade um desprezo vernáculo, pio, à Petrónio.» Podíamos agora fazer um entimema: o desprezo que Petrónio tinha pela humanidade, pio e vernáculo, advinha-lhe da contemplação crítica do espectáculo do mundo.
Lembramo-nos depois da descrição que Tácito faz do suicídio do árbitro de elegâncias de Nero (que a maior parte dos ratos de biblioteca, perdão, estudiosos identifica como sendo o mesmo Petrónio que escreveu o Satyricon). Se a memória não me falha, e segundo o que conta Tácito, na noite em que foi suicidado (Nero foi o imperador que num curto espaço de tempo suicidou três lendas vivas, e portanto depois mortas, da literatura ocidental: Séneca; Lucano, Petrónio), Petrónio deu um banquete, juntou os amigos todos, organizou uma anacrónica pândega à Dostoievsky, e deteve-se a conversar com os seus convidados, abriu os pulsos e por duas ou três vezes estancou a hemorrogia para ficar mais um bocado à conversa, pelo prazer da conversa. E foi assim. Ele era esta contradicção em termos, entre o desprezo pio e a contemplação embevecida. Há que amá-lo.

O peso

Voltarei a evocar-vos num país sem neblina,
desolação de instantes, rapto
de beleza, razões em meu rumor de vida;
voltarei a evocar-vos, nem sequer vosso peso
será em meu pescoço o peso de uma pedra
mas a mera sombra de uma só palavra.

María Victoria Atencia, Antologia Poética, José Bento (trad.), Assírio & Alvim, 2000

segunda-feira, 16 de maio de 2011

domingo, 15 de maio de 2011

Gangsters nos anos '20



Boardwalk Empire de Terence Winter (produção executiva de Martin Scorsese). Altamente recomendado.

Viver

Tengo unos deseos enormes de vivir, de salir a la vida. Me siento como la llama de una lumbre, que me pasa el alma y la carne y me asoma a los ojos con un resplandor inextinguible. Soy yo mi fuego y mi exaltación y siento una apetencia del mundo y del amor que me haría abrazarlo hasta ser yo él, hasta enajenarme en su extravío. ¿Se perderá esta fuerza mía? ¿Se ha de salvar solo mi arte, para encender mi lengua de poesía? ¡Ah, no, no lo quisiera! Quiero vivir; quiero vivir en vida, no en letra, ni tan siquiera en poesía. La poesía como la más ardiente corona de la vida. ¡Pero la vida, sí, la vida!


Fragmento de uma carta de Vicente Aleixandre ao pintor, e seu amigo, Gregorio Prieto, 1933.

O melhor livro é aquele que te faz parar a meio da frase

O versículo inteiro [III,7 do Alcorão] afirma: "Foi Ele quem fez descer sobre ti o Livro. Nele se encontram versículos unívocos que são a Mãe do Livro, e outros que são ambíguos. As pessoas em cujos corações [se encontra] o erro seguem o que é ambíguo, pois desejam a discórdia e a interpretação [metafórica], e ninguém conhece a sua interpretação [metafórica] senão Deus e os homens imbuídos de saber dizem acreditamos Nele, tudo vem do nosso Senhor, mas apenas os homens dotados de inteligência se lembram disso." Este versículo tem duas interpretações diametralmente opostas. Se a pausa é feita após "Deus", não se deve interpretar metaforicamente o Alcorão. Mas se a pausa é feita após "os homens imbuídos de saber", como faz Averróis, a interpretação metafórica é possível para certo tipo de pessoas. Esta leitura deste versículo é muito anterior a Averróis.

nota #27 de Averróis, Discurso Decisivo Sobre a Harmonia entre a Religião e a Filosofia. Catarina Belo (trad.) INCM: 2006



Foi Ele quem fez descer sobre ti o Livro. Nele se encontram versículos unívocos que são a Mãe do Livro, e outros que são ambíguos. As pessoas em cujos corações se encontra o erro seguem o que é ambíguo, pois desejam a discórdia e a interpretação, e ninguém conhece a sua interpretação senão Deus e os homens imbuídos de saber. Eles dizem: acreditamos Nele, tudo vem do nosso Senhor, mas apenas os homens dotados de inteligência se lembram disso. ALCORÃO 3.7

Foi Ele quem fez descer sobre ti o Livro. Nele se encontram versículos unívocos que são a Mãe do Livro, e outros que são ambíguos. As pessoas em cujos corações se encontra o erro seguem o que é ambíguo, pois desejam a discórdia e a interpretação, e ninguém conhece a sua interpretação senão Deus. E os homens imbuídos de saber dizem: acreditamos Nele, tudo vem do nosso Senhor, mas apenas os homens dotados de inteligência se lembram disso. ALCORÃO 3.7

Das coisas pouco importantes

É indispensável tornar conhecidas acções terrestres
com o comprimento do mundo e a altura do céu,
mas é importante também falar do que não é assim
tão longo ou alto.
É certo que os Gregos tentaram aperfeiçoar
tanto a Verdade quanto o gesto,
porém as ideias foram de longe as coisas mais mudadas.
Eis pois o momento de colocar a Grécia
de cabeça para baixo
e de lhe esvaziar os bolsos, caro Bloom.

Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia I.11

Paolina Borghese

Canova

Na noite fende o teu perfil egrégio,
agora que o cervo brama no jardim aqui próximo,
e atravessa o cerco do loureiro que abraça
o teu mármore despido: não há um rio
que te afogue a cintura, uma água cálida.
Salta da cama, caia teu diadema,
foge até ao prado. Gesualdo di Venosa
ouve-se em seu clavicórdio.
A perfeição possui vocação de desordem.

María Victoria Atencia, Antologia Poética, José Bento (trad.), Assírio & Alvim, 2000

sábado, 14 de maio de 2011

Andar

They both walked about the rose-garden hearing each other's voices in a sort of dream. They felt short of breath, almost as if they were suffocating.

Lawrence Durrell, "Mountolive", The Alexandria Quartet, Faber & Faber, 2009

O dilema de James Stewart

Como ocurre siempre con el cine de John Ford, una aparente simplicidad esconde una enorme complejidad. El hombre que mató a Liberty Valance es uno de sus filmes más sutiles en el que encontramos de todo: una defensa de la libertad de expresión, una historia de amor o un retrato irónico de la política. Pero la película tiene dos temas centrales: una reflexión sobre los protagonistas ocultos de la historia, sobre quién se queda siempre en segundo plano y, sobre todo, un debate sobre los límites de la violencia y la ley, sobre la justicia y la injusticia, sobre el poder los libros de leyes cuando no van apoyados por las pistolas. ¿Qué podemos hacer cuando la ley no es suficiente y la violencia pone en peligro nuestra sociedad? ¿Es legítimo? ¿Nos rebajamos cuando utilizamos los mismos métodos que nuestros enemigos (éste es uno de los argumentos que utiliza Stewart cuando discute con John Wayne: "matar a Liberty Valance me hace entrar en su mundo")?

sexta-feira, 13 de maio de 2011

an ideal insomnia


and look at this prepronominal funferal, engraved and retouched and edgewiped and puddenpadded, very like a whale's egg farced with pemmican, as were it sentenced to be nuzzled over a full trillion times for ever and a night till his noddle sink or swim by that ideal reader suffering from an ideal insomnia: all those red raddled obeli cayennepeppercast over the text, calling unnecessary attention to errors, omissions, repetitions and misalignments
James Joyce, Finnegans Wake

(boneco: H. Bosch)

quinta-feira, 12 de maio de 2011

Assuntos

Depois saberei quem sou, quem me tem ou que tenho
neste desmembrar-me ao poente, o ouvido
na almofada apoiado para escutar a noite;
ou neste despertar com a nuca apertada.
Oh solidão sem par, carência desse trecho
de tempo intransferível, após anos demais
e quarenta, a buscar-me; após tão longas noites
que em realidade - sei hoje - foram a minha vida.

María Victoria Atencia, Antologia Poética, José Bento (trad.), Assírio & Alvim, 2000

Identificação Perfeita

A identificação perfeita é quando te tornas uma frase num livro, um verso num poema, como aquela coisa que Pavese diz não sei onde «irei pelas ruas até cair morta de cansaço/ saberei viver sozinha e reter nos olhos/ cada rosto que passa e continuar a ser a mesma/ esta frescura que sobe e me busca as veias é um despertar/ que em manhã nenhuma sentira tão verdadeiro:/ sinto-me mais forte do que o meu corpo/ e um arrepio mais frio acompanha amanhã» (e quero lá saber se isto ficou bem citado), a identificação perfeita podia ser um termo de teoria literária (eu sou parecida/o com o livro x ou y, somos cordialmente muito semelhantes, estamos ligados, isto foi megalomanamente escrito para mim), a identificação perfeita é o que nos salva de nos devorarmos uns aos outros e é o que explica a utilidade da poesia (porque, hélas, já nada se pode dar ao luxo de ser desinteressadamente inútil, chegámos ao tempo em que nada te pode prender o coração se não servir para alguma coisa, em que não nos daremos a nada sem que isso sirva para alguma coisa, acho que já faltou mais para isso também, contra o verso de Ferlinghetti não arriscaremos o encanto). A identificação perfeita é uma coisa ética, o que significa que é uma coisa chata (sempre achei os contos morais chatos não por serem morais mas por serem enfadonhamente previsíveis). A identificação perfeita nem sempre desperta a nossa simpatia. A identificação perfeita às vezes não é uma cena bué da intensa dude que depois te sirva para escreveres um poema ou um post de blogue (embora às vezes também sirva para isso). A identificação perfeita por vezes há-de fazer-te triste (Heitor está morto, Andrei também), profundamente triste, oh sorrow sorrow sorrow, «sou como a águia que vê agora que a seta que a trespassa/ traz uma pena da sua própria asa», escreveu Ésquilo sobre Aquiles, que setas nos trespassaram que não tenham trazido com elas uma pena da nossa própria asa? A identificação perfeita requer estudo e ler muito e dá menos trabalho morrer profundamente estúpido (é também mais produtivo do ponto de vista do empírico), do ponto de vista da vida é também mais económico. A identificação profunda (mais perfeita que a perfeita) muitas vezes vai dar-te vontade de bater com a cabeça nas paredes de tristeza e depois far-te-á sentir profundamente vazio. Ninguém está para isso. Mais vale parecer muito intenso e não sê-lo (eu termino as tuas frases, parecerá que estamos na mesma onda). A verdade é que ninguém é muito intenso vinte e quatro horas por dia, a verdade é que quando te sentes uma merda no final do dia e vestes o teu pijama aos elefantes e aos corações e te deitas na caminha e tapas a cabeça com a almofada e choras baixinho completamente batido pela auto-comiseração a única coisa que te salva é se tiveres esperança em alguma coisa boa. E a esperança é uma forma de literatura porque a literatura é uma maneira acabada de sonho, memória para o futuro. A literatura às vezes não está nos livros. Estaremos muito sós para sempre e muito vazios se com nada ou com ninguém encontrarmos uma identificação perfeita. A vida é o mais literário dos géneros. Este texto é tonto, ligeiramente histérico e não está devidamente fundamentado mas eu também.

Sem nome #1

A sua primeira vítima foi o tirano, o inimigo — é crime, mas compreende-se, havia um motivo; mas depois já mata quem não é inimigo, o primeiro que lhe aparece à frente, mata por gozo, por uma palavra mais bruta, por um olhar, ou, simplesmente: «Sai da frente, não te ponhas no meu caminho, vou passar!» Parece embriagado, em delírio febril. Como se, ao ultrapassar o limite proibido, começasse a deliciar-se por já ter deixado de existir para ele algo de sagrado; como se fosse empurrado a passar de um salto por cima de qualquer legalidade, de qualquer autoridade, a deleitar-se com a mais desenfreada e ilimitada liberdade, a deleitar-se com o esmorecer do coração aterrorizado do outro, e é impossível que não sinta terror de si mesmo. Além disso, sabe que tem pela frente um castigo terrível. Talvez tudo isso se assemelhe à sensação que tem um homem no cimo de uma torre alta, atraído pelo abismo debaixo dos seus pés, a ponto de estar pronto a atirar-se de cabeça; fazê-lo já, acabar com tudo! E todas estas coisas acontecem às mais apagadas e submissas pessoas. Algumas, no meio de tal embriaguês, até se exibem. Quanto mais a pessoa fora humilhada antes, mais é levada agora a espevitar-se, a meter medo. Delicia-se com o medo que provoca, gosta até da repugnância que causa aos outros. Faz-se arrojado , mas é um «arrojado» que por vezes anseia o castigo, quer ser condenado, porque se lhe torna penoso carregar com tal arrojo fingido. É curioso que, na maior parte dos casos, todo este estado de ânimo, todo este fingimento, dura apenas até ao cadafalso, depois desaparece de todo: como se fosse um qualquer período formal, imposto antecipadamente por determinadas regras. Então, de repente, o indivíduo resigna-se, esbate-se, torna-se um trapo. No cadafalso, lamuria-se — pede perdão ao povo. Vai parar à prisão: é um ranhoso, um embrutecido — até nos admiramos: «Então aquilo é que matou cinco ou seis pessoas?»


Fiódor Dostoiévski, Cadernos da Casa Morta, Editorial Presença, Lisboa, 2003, tradução Nina Guerra e Filipe Guerra.

Post originalmente publicado por AJTR

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Coolest hair

Escrever, para alguns

Por que escreve?
Não há um porquê. Há uma afirmação. Eu só posso dizer "eu escrevo".

E por que é que não pode dizer "porquê"?
Porque se eu respondesse 'porquê' criava uma relação de causa e efeito.
Ora, eu não sinto em mim o porquê de escrever, como eu não sinto em mim o porquê de beber ou o porquê de olhar. Há a constatação de uma realidade: e nasci constitutivamente assim, escrevendo.

Maria Gabriela Llansol
in Jornal de Notícias
(14 de Julho de 1991)

Mais ou menos um passo do Talmude da Babilónia

Por tua vontade, Senhor nosso Deus, que seja o ano pleno de pesadas chuvas e quente. Que não parta da casa de Judah um seu governante e que a casa de Israel lhe não peça que uma a outra se sustentem, e não permitas a prece do viajante.
Yoma 53b

"Pequenas Memórias" de José Saramago no NYT

terça-feira, 10 de maio de 2011

Xadrez.

Ever fantasize about books?
















Gods and Mortals: Modern Poems on Classical Myths, Oxford University Press, 2001.

perdido no som

I

os bolsos de ontem vazios virados
do avesso quadrado de papel azul
última cinza clara o que era sobra
ternamente presa por tinta invisível
a certeza de que o que estava dito
já não estava em ti, como impreciso
grão de areia em ampulheta nunca
se fizera tempo, na própria sombra
se encolhera mas tu prossegues

II

não como o baterista que se engana
e pára um pouco para recomeçar ou
o jogador de monopólio que regressa
à casa de partida nenhuma destas coisas
eu sei que tu és daqueles que recomeça
como quem regressa não pelo caminho novo
antes acumulando em diferentes bolsos tudo
o que te precede como no meio da tempestade
de inverno aquele que pára para olhar para
trás e o outro que se sabe procurado pelo olhar
e é forçado a virar-se há um ponto em que
ambos se encontram e é um ponto em suspenso
na distância, silenciosa imprecisa forma de diálogo

III

procura-lo desligado de todos os fios
em sinais que talvez reconheças o isqueiro
azul sobre a mesa que na verdade é apenas
tábua a metálica máquina de escrever pousada
os dedos sobre ela pousados pianista nervoso
que não está na música há uma espessura
nos dias em que pousamos com passo de
sombra lugares de passagem amantes
que nunca foram nossos zonas de sombra
destroços que cedemos à imaginação

IV

o que tu podias saber não avança como
eco a que se agarra a próxima palavra
afunda-se como garra não chega a fazer
sentido porque na verdade são muito poucas
as coisas a que se crava timidamente chega
apenas a pousar ao de leve os dedos desenha
invisível forma a que nunca se conforma
não argumenta embora faça muito barulho
como som de pequenas asas contra o vidro
pássaro que por engano tristemente se fizera
preso guardas no bolso o isqueiro e sais

V

parece-te que nunca será noite que chegue
este lastro de azul e negro, manto que se
afunda nas horas ciclicamente, querias
embora nunca tivesses tentado caminhar
para fora do círculo a vermelho desenhado
no pátio mas desta vez não tornarás a pousar
a cabeça no seu colo a ti próprio deixaras
no bolso pequena nota em que te obliteraste
em que apagaste um pouco a custo o nome
a caneta riscado tentaste-te com a teimosia
de bicho preso que contra a parede cego se lança

VI

tentaste-te contra coisas feitas de nada cujo
significado te vai fugindo contra a noite
na sua última cor que se descola como
papel de parede em quarto húmido
duas ou três palavras no papel azul
a imprecisão dos números tende a tornar
os lugares menos concretos o peso
da chuva entre os ramos oscilando com
o peso – o som – tu és se alguma definição
fosse útil um lugar perdido no som

Tatiana Faia

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Do ser poeta, segundo Aschenbach

«Pois tens de saber que nós poetas não podemos percorrer o caminho do belo sem que Eros nos acompanhe e se imponha como guia; queremos pensar que somos heróis nós também e castos guerreiros, mas mais não somos do que mulheres, pois a paixão é o nosso sustento, e o nosso desejo permanece amor - este o nosso prazer, esta a nossa vergonha. Vês agora que nós poetas não podemos ser sábios nem dignos? Que necessariamente erramos, necessariamente somos aventureiros libertinos das emoções? A mestria do nosso estilo é mentira e loucura, a nossa glória e a nossa honra mera farsa, desprezamos a confiança das massas, a educação do povo e da juventude é uma empresa danada, a proibir. Pois como pode ser mestre quem nasce com uma inclinação natural e incorrigível para o abismo?»

Thomas Mann, A Morte em Veneza, Lisboa: Relógio d'Água, 2004, p. 110.

Um verso

Before my heart stops beating, and I become what I am not.

D. H. Lawrence, in "St. Matthew", Birds, Beasts & Flowers!, Black Sparrow Press, 1992.

Em que pensavas?*

What was I thinking? Of a passage in Proclus which says that Orpheus ruled over the silver race meaning those who led a 'silver' life; on Balthazar's mantelpiece presumably among the pipe-cleaners and the Indian wood-carving of monkeys which neither saw, spoke nor heard evil, under a magic pentacle from Pythagoras. What was I thinking? The foetus in its waxen wallet, the locust squatting in the horn of the wheat, an Arab quoting a proverb which reverberated in the mind. 'The memory of man is as old as misfortune.'

Lawrence Durrell, "Balthazar", The Alexandria Quartet, Faber & Faber, 2009

*Agora é decorar isto, porque esta é a melhor resposta a dar da próxima vez que nos perguntarem em que pensávamos.

domingo, 8 de maio de 2011

A sudden blow

Quando chegou àquela cidadezinha perto de Mégara onde contraiu a febre de que viria a morrer, é possível que já então Públio Maro (a.k.a. Vergílio) tivesse revisto aquele verso do Canto VI da Eneida, em que escrevera ibant obscuri sola sub nocte per umbram, que é (e não me lembro se já escrevi sobre isto) um verso perfeito, a mais perfeita forma de representação de alguma coisa de que tenho conhecimento ou memória, mas é intraduzível, nós começamos a tentar vertê-lo e o sentido perde-se para sempre.
O movimento da descida de Eneias ao Hades acompanhado pela Sibila, muito só na noite só, a coberto de penumbra, não é traduzível. Penso que talvez porque o verso conteve tão perfeitamente o movimento do que queria dizer. Assim, é uma coisa que está apenas na respiração daquele verso e qualquer tentativa de traduzi-lo, implica que o estilhacemos. Não é tanto o que verso diz, isso é fácil, mas o modo como está dito, este que é o cerne do modo como a literatura imita a vida, e que é uma coisa talvez sem mistério: um modo de ver que uma vez dito instaure entre nós e a realidade um estranhamento (a ideia não é minha, é de um senhor chamado Viktor Shklovsky), algo que se calhar até já vimos ou ouvimos mas que naquele contexto está arredado do que é, como Bartleby e o seu constante I'd prefer not to, ou, neste caso, um tipo e uma tipa que desceram ao inferno (que se a memória não me falha era literalmente um lugar na baía de Nápoles). Ibant obscuri sola sub nocte per umbram é uma coisa fora do tempo, que podia ficar a ecoar na nossa cabeça até não ter sentido e ainda assim seria belo, inutilmente belo.
E enquanto pensava nisto lembrei-me daquele verso inicial de Leda and the Swan de Yeats, e pensei que não podia haver melhor definição para aquilo que é um verso que nos diga alguma coisa, um verso que nos diga alguma coisa é sempre a sudden blow. Aliás, e generalizando, o momento em que alguma coisa nos prende é sempre a sudden blow.

"You know how to whistle. Don't you, Steve?"

sábado, 7 de maio de 2011

"Stranger than fiction" de Marc Foster, 2006

Novalis, o Pré-Socrático

Tudo é magia, ou nada. Racionalismo da magia.
Alles ist Zauberei oder nichts. Vernunftsmässigkeit der Zauberei.

Novalis, in Fragmentos. Trad Rui Chafes A&A: 2000

Bare Almond Trees

Wet almond trees, in the rain,
Like iron sticking grimly out of earth;
Black almond trunks, in the rain,
Like iron implements twisted, hideous, out of the earth,
Out of the deep, soft fledge of Sicilian winter-green,
Earth-grass uneatable,
Almond trunks curving blackly, iron-dark, climbing the slopes.

Almond tree, beneath the terrace rail,
Black, rusted, iron trunk,
You have welded your thin stems finer,
Like steel, like sensitive steel in the air,
Grey, lavender, sensitive steel, curving thinly and brittly up
in a parabola.

What are you doing in the December rain?
Have you a strange electric sensitiveness in your steel tips?
Do you feel the air for electric influences
Like some strange magnetic apparatus?
Do you take in messages, in some strange code,
From heaven's wolfish, wandering electricity, that prowls so
constantly round Etna?
Do you take the whisper of sulphur from the air?
Do you hear the chemical accents of the Sun?
Do you telephone the roar of the waters-over-the-earth?
And from all this, do you make calculations?

Sicily, December's Sicily in a mass of rain
With iron branching blackly, rusted like old, twisted implements
And brandishing and stooping over earth's wintry fledge, climbing
the slopes
Of uneatable soft green!

D. H. Lawrence, Birds, Beasts & Flowers!, Black Sparrow Press, 1992.

Hopper*
























Às vezes penso que as melhores cenas de film noir podiam ter sido todas roubadas a Edward Hopper.

*Imagem roubada em This isn't happiness.

la tâche de la philosophie

"Men are constantly attracted and deluded by two opposite charms: the charm of competence which is engendered by mathematics and everything akin to mathematics, and the charm of humble awe, which is engendered by meditation on the human soul and its experiences. Philosophy is characterized by the gentle, if firm, refusal to succumb to either charm. It is the highest form of the mating of courage and moderation. In spite of its highness or nobility, it could appear as Sisyphean or ugly, when one contrasts its achievement with its goal. Yet it is necessarily accompanied, sustained and elevated by eros. It is graced by nature's grace." (Leo Strauss in What is Political Philosophy?)

"Philosophy is needed only as a (pedagogical) answer to "sophistry": it is a "dialectical" defence of "natural" justice against the "sophistic" attacks on it. However, Plato evidently does not quite mean it that way. For in the Phaedo it is (evidently seriously) said that misoloy is the worst thing. That would mean that one should speak about justice in spite of the danger of sophistic errors." Alexander Kojève in Kojève-Strauss correspondence