para Joseph K., tendo em conta que, como disse
Kierkegaard, citado por Agustina,
«Quando alguém escreve acerca dos acontecimentos
da sua própria vida, é regra de delicadeza
não dizer nunca a verdade, mas reservá-la para si
e permitir que só se reflicta de diversos ângulos.»
I
como no poema de eugenio montale pensas agora
que subiram milhares de escadas de braço dado
imaginas nunca estarás certo que baste que dançaram
juntos através de todas as salas vazias destes
palácios desfeitos pela manhã os teus braços
em torno da sua cintura as mãos dela sobre os teus ombros
II
imaginas que talvez tivessem conversado entre intervalos
de música ou que já aí tivesses pressentido que o mar te cercava
que estava em torno de toda a casa que a árdua respiração
do vento àquela hora lançava contra as janelas mãos de areia
que a música te impedia de ouvir mas o que acontecia
era apenas a rapariga a segurar-te pelos ombros
III
como as marés no princípio das manhãs
as coisas que tememos esvanecem-se vão
para outros lugares tornaremos apenas a convocá-las
mais tarde todo esse exército de soldadinhos de chumbo
que de manhã afundaremos em água e deixaremos bater no fundo
IV
tornaremos a convocá-las apenas em caso de extrema necessidade
mas o que é a extrema necessidade de uma coisa que nos fira
não poderias dizê-lo não é sobre nada vantagem não é conhecimento
não tem a leveza de pés de rapariga que dançassem em
rasos sapatos pretos é um húmus que sobre o nosso chão está
e nada daí poderia ter nascido é uma maneira de noite
por isso de noite erras pela cidade atravessas as linhas de comboio
até ao mar em que quarto vazio poderias estar a dançar agora?
V
pensas que terão dançado como as personagens daquele filme de zurlini
conservamos o corpo depois de ter dançado mas o poema
depois de lido como disse leonard cohen contra homero
esvanece-se mas leonard cohen enganou-se um pouco porque
em algum lugar deve continuar a ser verdade que desci milhares
de escadas de braço dado contigo que em algum lugar o outro verso
de montale tal como o corrompemos continua a fazer sentido
«eu sei que devo perder-te [de novo] e não posso»
pois nem tudo se perde ficará a consolação de saber
que alguns poemas nos explicam
VI
e pensas que é estranho que não te possam exonerar
de sentir dor é estranho que algumas palavras não cumpram
a higiénica função de nos vestir que nos deixem mais sós
mais diante de nós nos espelhos palavras
que de toda a porcaria nos dispam nos deixem mais junto
ao coração da vida que como todos sabemos fica no chão
por isso encostas o ouvido ao solo como nos westerns
os fugitivos à espera de ouvir o comboio
de antecipar um sinal do que se segue
a angústia às vezes parece-se com isto
coisas que não podemos ouvir nem ver mas que
fatalmente em algum lugar sabemos que nos esperam
como os pés dela nos sapatos pretos baixos contra o chão
quando dançaram como personagens de zurlini ou apenas
como gente porque quanto menos significado melhor e o melhor
às vezes é que não nos assemelhemos a nada a ninguém
VII
e podes continuar a sentir-te cercado pelo mar
sem que nenhum mar te cerque podes esgotar
todos os caminhos da noite antes de tudo recomeçar
virá a manhã como um resgate e o café feito de novo
e terás na boca um gosto amargo que em breve se sumirá
à medida que enches de água a cafeteira e deitas café
no filtro e vês na janela uma mulher a estender em cordas lençóis
e todas as coisas que recordas se somem e tu respiras
como se estivesses em casa de novo e pela primeira vez
e nenhuma palavra te tivesse sido escrita na testa
e nenhum sinal pudesse permitir um reconhecimento
futuro e assim deo gratias é tarde terminemos
Tatiana Faia