quarta-feira, 30 de junho de 2010
terça-feira, 29 de junho de 2010
Soneto
Rugido de água ou duma floresta
Para lá da janela, mas breve adormecia
E ficava jazendo ausente em seu cabelo.
Por isso nada sei dela, senão destruído de noite
Algo do seu joelho, não muito do pescoço,
Cheiro de sal de banho no cabelo negro
E mais o que dela ouvi dizer.
Dizem-me que breve se esquece a sua face
Por ter vista talvez pra alguma coisa
Vazia como folha por 'screver.
Mas dizia-se que ela própria sabe
Não ser claro o seu rosto que se esquece.
Se lesse isto, não sabia de quem era.
Bertolt Brecht, Poemas, Paulo Quintela (trad.), Asa, 2007.
Sylvia Beach e Margaret Anderson
O póstumo
Tenho esperança nenhuma.
Os cegos falam duma saída. Mas eu
Vejo.
Quando os erros estiverem todos gastos,
Estará sentado, como último companheiro,
Em nossa frente o Nada.
Bertolt Brecht, Poemas, Paulo Quintela (trad.), Asa, 2007.
segunda-feira, 28 de junho de 2010
O mais prolongado Portugal x Espanha de sempre: 28 anos de guerra
Um cheirinho do início:
El Cauallero de la triste Figura DON QVIXOTE DE LA MANCHA, &c. Digo que como es notorio al mundo mi valor inuencible, lo sea tambien la Protestacion, y Reto, que por la presente hago, y es que despues del miserable castigo, que el Cielo ha dado a mi nacion Castellana en pena justa de su soberbia, embustes, y tirannias, reduziendola al mayor extremo de couardia, que jà mas ha encontrado Cauallero andante en la redondez de la tierra, con que vergonçosamente ha perdido su monarchia, y en particular despues de la misteriosa libertad de los Portuguezes nuestros aduersarios antigos, y increible corage, con que el Verano passado estos brabos gigantes, sin receber daño alguno, han por todas partes talado nuestros campos, quemado nuestros lugares, y muerto nuestras gentes ...
Eu bem vos dizia...
David Sherman, Camus, Blackwell, 2009.
Ao cuidado de quem goste de ténis
Eis um excerto de uma recensão: At 22, Budge was No. 1 in the world, on his way to becoming a superstar. The 28-year-old von Cramm, No. 2, feared he was on his way to a Nazi prison — or worse. Von Cramm’s coach, the “fading American hero” Bill Tilden, was unsure where he was going.
Fisher depicts the intersection of their careers amid the simmering world conflict, juxtaposing history and sport in an absorbing but uneven narrative that does not always live up to the match’s billing.
Zefiro torna (Monteverdi) - Rial & Jaroussky
Música: Claudio Monteverdi (1567-1643)
Texto: Ottavio Rinuccini (1562-1621)
Interpretação: L'Arpeggiata/Christina Pluhar/Philippe Jaroussky/Nuria Rial
Zefiro torna e di soavi accenti
l'aer fa grato e'il pié discioglie a l'onde
e, mormoranda tra le verdi fronde,
fa danzar al bel suon su'l prato i fiori.
Inghirlandato il crin Fillide e Clori
note temprando lor care e gioconde
e da monti e da valli ime e profonde
raddoppian l'armonia gli antri canori.
Sorge più vaga in ciel l'aurora, e'l sole,
sparge più luci d'or; più puro argento
fregia di Teti il bel ceruleo manto.
Sol io, per selve abbandonate e sole,
l'ardor di due belli occhi e'l mio tormento,
come vuol mia ventura, hor piango hor canto.
domingo, 27 de junho de 2010
É preciso aprender a comparar. Para comparar
É preciso ter já observado. Pela observação
Produz-se um saber, mas é necessário o saber
Para a observação. E:
Observa mal aquele que nada sabe empreender
Com o observado. Com olhar mais agudo
O pomareiro abrange a macieira do que o passeante.
Mas não vê exactamente o homem quem não saiba
Que o homem é o destino do homem.
Bertolt Brecht, in «Fala a operários-actores Dinamarqueses sobre a arte da observação», Poemas, Paulo Quintela (trad.), Asa, 2007
E Deus manifesta-se no pontapé livre
Com a devida vénia ao Chico e ao André, que conhecem pérolas destas.
sábado, 26 de junho de 2010
Tal era Ulisses
nem onde desce sob a terra o sol que dá luz aos mortais,
nem onde nasce; mas pensemos rapidamente se nos resta
algum expediente.
Homero, Odisseia, Canto X, vv. 190 - 193, Tradução de Frederico Lourenço, Livros Cotovia, 2003
sexta-feira, 25 de junho de 2010
Aos que virão a nascer
Quando lá reinava a fome.
Vim pra entre os homens no tempo da revolta
E com eles me revoltei. Assim passou o tempo
Que na terra me foi dado.
O meu pão comi-o entre as batalhas.
Deitei-me a dormir entre os assassinos.
Dei-me ao amor, descuidado
E vi a natureza sem paciência.
Assim passou o tempo
que na terra me foi dado.
As estradas levavam ao pântano no meu tempo.
A língua traiu-me ao carniceiro.
Pouco pude fazer. Mas os que mandavam
Sem mim estavam mais seguros, esperava eu.
Assim passou o tempo
Que na terra me foi dado.
As forças eram poucas. O alvo
Estava muito longe.
Via-o com nitidez, inda que pra mim
Difícil de alcançar.
Assim passou o tempo
Que na terra me foi dado.
Bertolt Brecht, Poemas, Paulo Quintela (trad.), Asa, 2007.
Ao refúgio na Dinamarca nos primeiros anos de exílio
Aquela velha frase CONCRETA É A VERDADE
Que o fugitivo te inscreveu na parede mesmo ao meio,
Sobreviveu aos ataques dos aviões de bombardeio?
Bertolt Brecht, Poemas, Paulo Quintela (trad.), Asa, 2007
Refúgio
Não levará a palha.
No pátio para o baloiço das crianças
Há barrotes cravados.
O correio vem duas vezes
Aonde as cartas seriam bem-vindas.
Sund abaixo vêm as barcaças.
A casa tem quatro portas, pra fugir por elas.
Bertolt Brecht, Poemas, Paulo Quintela (trad.), Asa, 2007.
quinta-feira, 24 de junho de 2010
quarta-feira, 23 de junho de 2010
Agamémnon
direcções as almas femininas das mulheres,
aproximou-se a alma triste de Agamémnon, filho de Atreu.
Em seu redor outras se congregavam; e outros havia que em casa
de Egisto com ele foram assassinados e seu destino encontraram.
Reconheceu-me assim que bebeu do negro sangue.
Chorou alto e verteu logo copiosas lágrimas,
estendendo para mim as mãos, desejo de me tocar.
Mas nele já não havia força ou vigor, tal como
tinha anteriormente nos seus membros flexíveis.
Rompi a chorar assim que o vi e comoveu-se-me o coração.
Homero, Odisseia, Canto XI, vv. 385 - 395, Tradução de Frederico Lourenço, Livros Cotovia, 2003
terça-feira, 22 de junho de 2010
Recordando Marie A.
Naquele dia, na lua azul de Setembro,
Calmo, debaixo da ameixoeira nova,
Tive-a eu, calma amada pálida,
Nos braços como um sonho lindo.
E sobre nós, no belo azul de Verão,
'Stava uma nuvem que olhei por longo tempo:
Era muito branca e ia lá muito alto,
E quando ergui os olhos tinha-a levado o vento.
2
Desde esse dia muitas, muitas luas
Boiaram calmas no horizonte e passaram.
As ameixeiras, com certeza as derrubaram -
E o que é feito do amor? - Perguntas tuas -
E eu respondo: Não me posso lembrar.
E no entanto, sim, sei o que queres dizer.
Mas do rosto, realmente não me posso recordar.
Apenas sei que outrora o beijei.
3
E também do beijo me teria já esquecido
Se não fosse aquela nuvem que lá estava.
Dessa ainda sei e hei-de sabê-lo sempre:
Era muito branca e muito alto pairava.
As ameixeiras talvez inda floresçam,
E a tal mulher tem sete filhos já, talvez.
Mas aquela nuvem floresceu só por minutos,
E, quando ergui os olhos, no vento se desfez.
Bertolt Brecht, Poemas, Paulo Quintela (trad.), Asa, 2007
Coro final
Que em breve, por si só, ela se escoa.
Pensai na escuridão, no grande frio
Deste vale que de lágrimas ecoa.
Bertolt Brecht, Poemas, Paulo Quintela (trad.), Asa, 2007
Amarga canção de amor
Amei-a muito um dia.
Por isso sei também: um dia
Deve ter sido bela.
É certo que não sei agora já como parecia:
Um dia apagou o que brilhou durante sete luas.
Bertolt Brecht, Poemas, Paulo Quintela (trad.), Asa, 2007
segunda-feira, 21 de junho de 2010
Landscape
has left carcasses of horses
on a bald hill the bones of a recently conquered castle are glowing
there's only stone sand waste and a wind without purpose or color
What enlivens the landscape is a moon sharply inprinted on the sky
and a few soiled shadows bellow
as well as a white gallows for hanging from it are the thin pods
of bodies in which a wind blows life this wind without trees and clouds.
Zbigniew Herbert, The Collected Poems 1956 - 1998, Alissa Valles, Ecco, 2007
'Das leben der Anderen' de Florian Henckel von Donnersmarck, 2006
[Georg Dreyman] The State's head office for Statistics on Hans Beimler St. counts everything, knows everything: how many shoes I buy per year: 2.3, how many books I read in a year: 3.2, and how many students graduate every year with an 4.0 GPA: 6,347. But there is one number not registered,perhaps because such a figure hurts even the bureaucrats: suicides. If you called the Beimler St. office and asked, "How many people between the Elbe and Oder rivers, between the Baltic Sea and Ore Mnts. were driven to death from desperation?" Then our oracle of numbers remains silent, and probably writes down your full name for the State Security, those grey men who take care of our country's security and happiness. Since 1977 our country has ceased counting cases of suicide."Murdering oneself". That's what they call it.
Ballad: that we do not perish
but now will never return
left their trace on a wave -
a shell lovely as a fossil mouth
sinks to the depths of the sea
Those who trod the sandy road
but never reached the sutters
though they could see rooftops -
will find shelter in the air's bell
and those who will orphan only
a chilly room a couple of books
an empty inkwell a blank page
verily did not wholly die
they whisper in wallpaper groves
their flat heads live on the ceiling
their paradise is made of air water
of lime of earth an angel of winds
will chafe their bodies in his hand
they will
waft across pastures of this world
Zbigniew Herbert, The Collected Poems 1956 - 1998, Alissa Valles, Ecco, 2007
Anabasis
crafty and ruthless - to be sure - murdered
two hundred and fifteen daylong marches
- please kill us we can't go any farther -
thirty-four thousand six hundred fifty stadia
harrowed by insomnia they traversed wild countries
tricky fords snowy mountain passes and salty plains
hacking a path through the living bodies of peoples
it's good they didn't claim to be defending civilization
the famous cry on the mountains of Teches
is interpreted incorrectly by sentimental poets
they had just found the sea a way out of the dungeon
they journeyed without Bible prophets burning bushes
without signs on earth without signs from the heavens
with the terrible consciousness that life is momentous.
Zbigniew Herbert, The Collected Poems 1956 - 1998, Alissa Valles, Ecco, 2007
medo
«Queria pedir-lhe que não saísse daqui, me acompanhasse, ficasse comigo deitada aguardando não só a manhã mas a próxima noite, e a outra noite, e a noite seguinte, porque o isolamento e a solidão se me enrolam nas tripas, no estômago, nos braços, na garganta, me impedem de me mover e de falar, me tornam num vegetal agoniado incapaz de um grito ou de um gesto, à espera do sono que não chega. Fique comigo até que eu, finalmente, adormeça, me afaste de si numa dessas inexplicáveis reptações frouxas com que os afogados oscilam nas vazantes, me estenda de bruços, de boca na almofada, babando na barriga da fronha palavras indistintas, me afunde no poço pantanoso de uma espécie de morte, a ressonar o meu grosso coma de pastilhas e de álcool.»
sexta-feira, 18 de junho de 2010
José Saramago (1922 - 2010)
José Saramago, Memorial do Convento, p. 169.
quinta-feira, 17 de junho de 2010
To the river
I step in your stream more and more changed
so thath I might be a cloud a fish or stone cliff
and you are changeless like a clock measuring
the body's metamorphoses and the spirit's fall
the gradual disintegration of tissues and love
I born of clay
want to be your pupil
to know the heart of Olympian string
cool procession murmuring column
bedrock of my faith and my despair
teach me stuborness and endurance
so that I shall deserve in the last hour
to repose in the shade of a great delta
in a holy triangle of beginning and end
Zbigniew Herbert, The Collected Poems 1956 - 1998, Alissa Valles, Ecco, 2007
Falar
Raymond Carver, O que sabemos do Amor (Beginners), João Tordo (trad.), Quetzal, 2010
quarta-feira, 16 de junho de 2010
Bloomsday 2010
He rested an innocent book on the edge of the desk, smiling his defiance. His private papers in the original. Ta an bad ar an tir. Taim imo shagart. Put beurla on it, littlejohn.
Quoth littlejohn Eglinton:
- I was prepared for paradoxes from what Malachi Mulligan told us but I may as well warn you that if you want to shake my belief that Shakespeare is Hamlet you have a stern task before you.
Bear with me.
Stephen withstood the bane of miscreant eyes, glinting stern under wrinkled brows. A basilisk. E quando vede l'uomo l'attosca. Messer Brunetto, I thank thee for the word.
James Joyce, Ulysses
Henry Roth*
*Ou de como as disposições de um autor podem ser destruídas pelas disposições do seu editor.
To Apollo
He went in a rustle of stone robes
he cast a shadow a glow of laurels
his breaths were light as a statue's
but his movements like a flower's
rapt by the sound of his own song
he raised a lyre to the height of silence
immersed in himself
his pupils white as a stream
stone
from his sandals
to the ribbons in his hair
I imagined your fingers
had faith in your eyes
the unstrung instrument
the arms without hands
give me back
youth's shout
arms held out
and my head
in an immense crest of delight
give me back my hope
speechless white head
silence -
a fissured neck
silence -
a broken song
Zbigniew Herbert, The Collected Poems 1956 - 1998, Alissa Valles, Ecco, 2007
Os factos
J. D. Salinger, in «A Fase Azul de Daumier-Smith», Nove Contos, José Lima (trad.), Difel, 2005.
terça-feira, 15 de junho de 2010
Lines of a pantheist
- says the poet -
pierce me with distance's arrow
drink me source
- says a drinker -
to the dregs drink me to nullity
let sharp eyes deliver me
to devouring landscapes
words meant to save the body
may they bring me precipices
a star will sink its root in my forehead
the source will lend my face humanity
and you'll awaken silent
in the palms of stillness
at the heart of the thing
Zbigniew Herbert, Collected Poems 1956 - 1998, Ecco, Alissa Valles (trad.), 2007
Home
a home for children beasts apples
a square block of empty space
under an absent star
home was childhood's telescope
home was feeling's skin
a sister's cheek
a tree's branch
a flame blew out of cheek
a bullet struck out the branch
a homeless footsoldier's song
over the scattered ash of a nest
home is a childhood's cube
home is feeling's die
a burnt sister's wing
a dead tree's leaf
Zbigniew Herbert, The Collected Poems 1956 - 1998, Alissa Valles, Ecco, 2007
segunda-feira, 14 de junho de 2010
O ser,
todas as mãos,
qualquer palavra que se diga no mundo,
o trabalho da tua morte,
Deus que não trabalha.
Mas o não ser também começa entre as minhas mãos de homem.
O não-ser,
todas as mãos,
a palavra que se diz fora do mundo,
as férias da tua morte,
a fadiga de Deus,
a mãe que nunca terá filho,
meu não morrer ontem.
Mas as minhas mãos de homem onde começam?
Roberto Juarroz, Poesia Vertical, Arnaldo Saraiva (trad.), 1998.
para me olhar a partir delas
e me despojar do meu olhar.
A minha memória espera-me nas coisas
para me provar que não existe o olvido.
E as coisas apoiam-se em mim,
como se eu, que não tenho raiz,
fosse a raiz que lhes falta.
Será que talvez as coisas
também esperem por mim?
Será que tudo o que existe
se espera fora de si?
Será afinal que os meus braços
estão abertos para me abraçar?
Roberto Juarroz, Poesia Vertical, Arnaldo Saraiva, Campo das Letras, 1998
domingo, 13 de junho de 2010
Os cemitérios estão cheios de fraudes.
As ruas estão cheias de fantasmas.
Há poucas mortes inteiras.
Mas o pássaro sabe em que ramo último poisa
e a árvore sabe onde termina o pássaro.
Há poucas mortes inteiras.
A morte é cada vez mais insegura.
A morte é uma experiência da vida.
E às vezes são precisas duas vidas
para poder completar uma morte.
Há poucas mortes inteiras.
Os sinos dobram sempre o mesmo.
Mas a realidade já não oferece garantias
não basta viver para morrer.
Roberto Juarroz, Poesia Vertical, Arnaldo Saraiva (trad.), 1998.
sexta-feira, 11 de junho de 2010
A perder de vista no sentido do meu corpo
A erva na base dos rochedos e as casas amontoadas
Ao longo o mar banhando a tua vista
Estas imagens de um dia e outro dia
Os vícios as virtudes tão imperfeitas
A transparência dos transeuntes nas ruas de acaso
E as transeuntes exaladas pelas tuas pesquisas obstinadas
As tuas ideias ficas no coração de chumbo nos lábios virgens
Os vícios as virtudes tão imperfeitas
A semelhança dos olhares consentidos com os olhares conquistados
A confusão dos corpos das fadigas dos ardores
A imitação das palavras das atitudes das ideias
Os vícios as virtudes tão imperfeitas
O amor é um homem inacabado
Paul Eluard, L' Amour de la Poésie, 1929, Antologia, Tradução de António Ramos Rosa, Tempo de Poesia n.º8
Léda
E murmuro um cantar da minha infância
Numa suave cama meu corpo como um íman
Desenha um céu de estrelas visto em sonhos
Todos me perderam de ninguém sou
Contudo sou como um espelho volante
Ofereço meu riso às fáceis cortesias
Meus seios têm a idade de ser acariciados
Como um sino pela tempestade atroz
Como um pão raro por quem saciou a fome
Posso limitar o poderia dos deuses
E deitar abaixo a sua imaginação
Ser mortal reproduzindo-me
Ser eterna destruindo o tempo
Hei-de corar quando o frio me tomar
E serei de neve nas chamas
Paul Eluard, Léda, 1949, Antologia, Tradução de António Ramos Rosa, Tempo de Poesia n.º8
"Aula do Kama Sutra" - Darwish dito por ele mesmo
Com um copo com embutidos de lazúli
espera por ela
Sobre o lago em volta da tarde e o perfume de flores
espera por ela
Com a paciência do cavalo pronto para descer a montanha
espera por ela
Com o bom gosto do príncipe magnífico
espera por ela
Com sete almofadas cheias de nuvens leves
espera por ela
Com o fogo do incenso mulher enchendo o lugar
espera por ela
Com o cheiro do sândalo homem em redor do dorso dos cavalos
espera por ela
E não tenhas pressa, e se ela chegar depois da hora
então espera por ela
E se ela chegar antes da hora
então espera por ela
E não assustes os pássaros que estão nas suas tranças
e espera por ela
Para que ela se sente descansada como um jardim no cimo da sua beleza
e espera por ela
Para que respire este ar estranho no seu coração
e espera por ela
Para que levante o vestido das suas coxas, nuvem por nuvem
e espera por ela
E trá-la à varanda para ver uma lua afogada em leite
espera por ela
E oferece-lhe água antes do vinho, e não
olhes para as perdizes gémeas a dormir sobre o seu peito
e espera por ela
E toca-lhe a mão devagarinho quando
pousa o copo sobre o mármore
como se lhe levasses orvalho
e espera por ela
Fala com ela como uma flauta
com a corda assustada de um violino
como se fôsseis os dois testemunhas do que o amanhã vos prepara
e espera por ela
Ilumina-lhe a noite anel por anel
e espera por ela
até que a noite te diga:
não ficaram senão vós dois no mundo
Portanto leva-a com cuidado para a tua morte desejada
e espera por ela
Mahmûd Darwîsh
Tradução do árabe: André Simões
Disse-to pelas árvores do mar
Por cada onda pelos pássaros nas folhas
Pelos calhaus do ruído
Pelas mãos familiares
Pelo olhar que se torna rosto ou paisagem
E o sono dá ao céu a sua cor
Por toda a noite bebida
Pela grade das estradas
Pela janela aberta por um fronte descoberta
Disse-to pelos teus pensamentos pelas tuas palavras
Toda a carícia toda a confiança se sobrevivem.
Paul Eluard, L' Amour de la Poésie, 1929, Antologia, Tradução de António Ramos Rosa, Tempo de Poesia n.º8
quinta-feira, 10 de junho de 2010
No dia de Camões
Mote alheo
De vuestros ojos sentellas,
Qu'enciẽden pechos de yelo
Suben por el ayre al cielo
Y en llegando son estrellas
Voltas proprias
Falsos looores os dan
Qu'essas sẽtellas tan raras,
No son nel cielo mas claras
Qu'en los ojos donde estan.
Porque quãdo miro en ellas
De como alũbran al cielo.
No se que seran nel cielo
Mas, se aca son estrellas.
Ni se puede presumir,
Que al cielo suban señora
Que la lũbre qu'en vos mora
No tiene mas que subir,
Mas pienso q dan querellas
A Dios nel octauo cielo,
Porque son aca en el suelo,
Dos tan hermosas estrellas.
Camões
(mantenho a ortografia da edição de 1621 das Rimas)
Uma alegoria dos dias
tentando levantar com as mãos uma pedra monstruosa.
Esforçando-se para a empurrar com as mãos e os pés,
conseguiu levá-la até ao cume do monte; mas quando ia
a chegar ao ponto mais alto, o peso fazia-a regredir,
e rolava para a superfície a pedra sem vergonha.
Ele esforçava-se de novo para a empurrar: dos seus membros
escorria o suor; e poeira da sua cabeça se elevava.»
Homero, Odisseia (11. 593 – 600),Tradução de Frederico Lourenço, Livros Cotovia, 2003 .
quarta-feira, 9 de junho de 2010
Inferno
das contínuas leis de morte que governam o acaso,
menos a tua imagem de fogo e sombra
corroendo as débeis células do meu corpo.
Luís Quintais, Mais Espesso que a Água, Livros Cotovia, 2008
Hemingway reports Spain
It was a lovely false spring day when we started for the front this morning. Last night, coming in to Barcelona, it had been gray, foggy, dirty and sad, but today it was bright and warm, and pink almond blossoms colored the gray hills and brightened the dusty green rows of olive trees.
Then, outside of Reus, on a straight smooth highway with olive orchards on each side, the chauffeur from the rumble seat shouted, "Planes, planes!" and, rubber screeching, we stopped the car under a tree.
Jardim
o pavão
que ensombrecia
o dia
profusamente?
Um veneno, um veneno
que é a imerecida
cor
deste canto.
Luís Quintais, Mais Espesso que a Água, Livros Cotovia, 2008
Depois da escrita
raro, e o ruído
é a plana e fugaz vontade do pensamento.
Será esta a vertigem, o abandonado court de ténis após as
chuvas de uma da tarde de maio,
a linguagem mais branda de uma poça de água na
imperfeita sintética superfície.
Eu começo depois da escrita, toda a escrita começa depois
da escrita.
Luís Quintais, Mais Espesso que a Água, Livros Cotovia, 2008
terça-feira, 8 de junho de 2010
Uma maior determinação
J. D. Salinger, Nove Contos, Difel, José Lima (trad.), 2005
Tédio
sei que o tédio
é a terra na qual
cresce a flor da ameaça,
esse símbolo deslocado
com que entendo
a primitiva técnica
de escrita e arremesso.
Luís Quintais, Mais Espesso que a Água, Livros Cotovia, 2008
Gaguez
Fomos condenados à gaguez triunfal
pela qual procuramos ainda dizer
o que nos foi recusado.
Na mínima dor colhemos
os frutos que alimentam o nosso sangue,
a corrente que nos prende
à furiosa morte.
A metáfora da alma
será ainda a melhor dádiva
deste corpo tão eficiente e tão pobre.
Assim nos saciamos.
Luís Quintais, Mais espesso que a água, Livros Cotovia, 2008
segunda-feira, 7 de junho de 2010
Oda a tu nombre doble
---
(*) in Julio Cortázar, Octaedro, Alianza Editorial, Madrid, 2005
Olinda Wischral
quando quisessem
não deixar por aí
lembranças pedaços carcaças
gotas de sangue caveiras esqueletos
e esses apertos no coração
que não me deixam dormir
Paulo Leminski, O ex-estranho, Iluminuras, 2001
Calma
«Es cierto que escribir me calma de a ratos, será por eso que hay tanta correspondencia de condenados a muerte, vaya a saber. Incluso me divierte imaginar por escrito cosas que solamente pensadas en una de esas se te atoran en la garganta, sin hablar de los lagrimales; me veo desde las palabras como si fuera otro, puedo pensar cualquier cosa siempre que en seguida lo escriba, deformación profesional o algo que se empieza a ablandar en las meninges.»
Julio Cortázar, Liliana llorando
(in Octaedro, 1974)
sábado, 5 de junho de 2010
sexta-feira, 4 de junho de 2010
Lope, em sua casa III
a madeira. As roupas penduradas. O cobertor
que dá calor ainda. Olhai-os: os brinquedos são
[meninos,
a mãozinha de bronze. O candeeiro. Mais espelhos...
A liberdade foi amor e acabou em prisões.
Preso ou livre um homem é conforme lhe diz a
[sua alma.
Em suas cadeias solto forjou o destino tornando-se
quem entre muros sempre viveu, venceu: entregou-se.
Liberdade mais que amor foi Lope, e assim brilha
perpetuamente livre: mais livre hoje faz o homem.
Como Moisés é o velho
Cada homem pode ser aquele
e mover a palavra e erguer os braços
e sentir como do seu rosto a luz varre
o velho pó dos caminhos.
Porque ali está a aposta.
Olha para trás: a aurora.
Adiante: mais sombras. E as luzes despontavam!
E ele agita os braços e proclama a vida,
desde a sua morte a sós.
Porque como Moisés, morre.
Não com as tábuas vãs e o ponteiro, e o raio nas
......................................................................[alturas,
mas desfeitos os textos na terra, ardidos
os cabelos queimados os ouvidos pelas palavras
....................................................................[terríveis,
e alento ainda nos olhos, e nos pulmões a chama,
e a luz na boca.
Para morrer basta um ocaso.
Uma porção de sombra na linha do horizonte,
Um formigar de juventudes, esperanças, vozes.
E além na sucessão, a terra: o limite.
O que os outro verão.
quinta-feira, 3 de junho de 2010
Epitáfio
ardente corpo que na terra aguardas
como um deus o esquecimento, aqui te chamo,
limite de uma vida, aqui, exacto
corpo que ardeu. Não sepulcro, terra livre.
Lançai ao passar vosso olhar lento,
o que uma dura pedra vos pedisse,
ou o que pede uma árvore sem pássaros,
casta na noite, em nua vigília.
Nunca o rumor de um rio aqui se escute,
Sob a profunda terra o morto vive
como absoluta terra.
Homem, passa:
não sobre um peito soarão teus passos.
Vicente Aleixandre, Antologia de Vicente Aleixandre, Selecção, tradução e notas de José Bento, Editorial Inova, 1977
Juan Rulfo, Pedro Páramo, Rui Lagartinho e Sofia Castro Rodrigues (trad.), Cavalo de Ferro, 2007.
Mark Twain
To know Twain fully, you first have to know the river. He was raised on its banks, but their acquaintance goes much further; having spent his early 20s dabbling in printing and newspapers elsewhere, Twain returned to Hannibal and trained as a steamboat pilot, studying 2,000 miles of the river before he was awarded his licence in 1859. He knew these waters intimately; he loved them, was reassured and inspired by them. Even his pen name was a piece of riverboat terminology—the boatman’s cry of “mark twain!” meant that the water was two fathoms deep and it was safe to proceed. It was already a pseudonym before Twain came along: he says in “Life on the Mississippi” that it had been used by another riverman, Captain Isaiah Sellers, upon whose death he breezily “confiscated” it.
O Corpo de Deus de 1647
No dia de Corpo de Deus de 1647, que nesse ano calhou a 20 de Junho, D. João IV comungou e foi à procissão, que percorria o que é hoje a Baixa de Lisboa. Alegadamente acoitado numas casas que teria alugado e cujas paredes teria derrubado para poder ter vista para os dois lados da rua, Domingos Leite Pereira esperava a passagem do rei para, alegadamente a mando de Castela, matar D. João IV (*). O rei lá foi à procissão, e voltou, imagino, para o regaço da sua Luisinha de Gusmão, no fim da dita. Então não houve tiroteio? Pois não. Alegadamente, Domingos Leite Pereira ter-se-á arrependido à última da hora, ao ver uma "majestade divina" pairando sobre o rei e que lhe teria paralisado os membros, impedindo-o de alvejar o Bragança - o que veio mesmo a calhar à propaganda quinto-imperista, que se fartou de escrever sobre isto. Confessou isto tudo em interrogatório, ou pelo menos assim diz a a crónica oficial, que acrescenta que o regicida frustrado, terá entoado loas a D. João IV, qual Saulo, aliás Paulo, depois da Estrada de Damasco.
Domingos Leite Pereira terá então fugido para Madrid, onde alegadamente terá prometido a Filipe IV que tentaria de novo matar o homem - e aqui não bate a bota com a perdigota: então se a criatura viu a tal majestade divina sobre o rei e lhe entoou louvores, então porque raio resolve que afinal vai tentar matar o homem de novo, o tal a quem entoou louvores e que viu ser protegido pelo seu Deus? Bom, mas é assim que reza a crónica oficial, e quem sou eu para contrariar Frei Francisco Brandão. (o Camilo arranjou uma versão muito melhor, mas o Camilo é o Camilo, eu sou eu).
Seja como for, em finais de Julho de 1647 Domingos Leite Pereira está de novo em Portugal, alegadamente para tentar matar D. João IV, outra vez. A tentativa não passa disso mesmo. Traído pelo companheiro, Roque da Cunha, é preso no dia 31 de Julho de 1647. Parece que confessou logo tudo, inclusive a história da majestade divina, que tão bem aproveitada seria pela propaganda do Quinto Império. Foram encontradas no lugar do crime que não aconteceu a escopeta e as balas embebidas em veneno. O que é muito conveniente, e revelador de que o moço era bastante distraído. Como a justiça naqueles tempos era célere, talvez demasiado célere, foi executado com requintes de crueldade no dia 21 de Agosto de 1647, apenas 2 meses depois do crime que não chegou a cometer.
O lugar onde não aconteceu o atentado está hoje em parte visível na Rua dos Fanqueiros, pois a rainha D. Luísa de Gusmão mandou que as casas fossem derrubadas e ali se fizesse um convento. Hoje apenas restam partes da igreja do convento, destruído em 1755.
A crónica oficial do acontecimento saiu logo em 1647, e é uma delícia propagandística. Recomendo vivamente os passos em discurso directo, sobretudo os atribuídos a D. João IV.
Um dos muitos textos que então se escreveram sobre o caso foi um sermão de Frei Luís de Sá, lente na Universidade de Coimbra, e que tem este delicioso título:
«Sermão que pregou o doutor Fr. Luís de Saa religioso da ordem de S. Bernardo, Lente da Cadeira de S. Thomas, e Gabriel da Universidade de Coimbra na procissão solemne que o Reverendíssimo Cabido do próprio bispado instituiu. Pro gratiarum actione, de Deus haver livrado a sua Majestade da admirável treição, que contra ele por ordem de Castela se tinha maquinado em dia de Corpus Christi.»
Foi pronunciado em Coimbra em 8 de Setembro de 1647, e publicado no mesmo ano - naquela época não se brincava em serviço, não havia cá as molezas e procrastinações dos nossos dias. Transcrevo dois parágrafos, modernizando a ortografia, mas conservando os casos em que a escrita denuncia formas de pronunciar diferentes das contemporâneas.
«Eu não me espanto por não ter este Salmo Autor ao certo, porque como é de um ânimo agradecido, e há tão poucos no mundo, não é novo não se lhe saber o nome, e acrescento que visto não ter este Salmo conhecidamente Autor, levado do protentoso milagre porque vimos render hoje as graças a esta santa Sé Catedral de Coimbra, com pública procissão, tão autorizada, que são estas palavras do Anjo Custódio do nosso Rei e Reino, falando expressamente com ele no Santíssimo dia de Corpus, defronte de nossa Senhora da Palma de Lisboa, quando Castela toda sempre falsa, com parte de Portugal traidor, capitaneados ambos do Diabo merediano, intentaram fazer alvo de suas setas, e tiros no pino do meio dia, a quem ia coberto do escudo da maior verdade, a custódia e âmbula do Santíssimo Sacramento.
Querem dizer as palavras do Anjo Custódio deste Reino falando com o Sereníssimo Rei nosso senhor Dom João o IV. A verdade do Senhor vos servira de escudo em toda a vida, não tendes que temer sombras nocturnas, nem setas que se derijam contra vós todos os dias: não façais caso de conselhos, e juntas de traidores, que no segredo da noite se maquinam contra vossa pessoa, que são acções de quem vive em trevas co juízo; finalmente tende grande ânimo, quando ao pino do meio dia vos virdes cometer do Diabo merediano com incurso diabólico.»
Fonte: impresso na Biblioteca Nacional, com a cota TR5661/19p
-----
quarta-feira, 2 de junho de 2010
Às vezes um verso (ou dois)
que pranto escuto às vezes quando és só uma lágrima
Vicente Aleixandre, Antologia de Vicente Aleixandre, Selecção, tradução e notas de José Bento, Editorial Inova, 1977
Sempre
De fronte, os delfins ou a espada.
A certeza de sempre, os não-limites.
Esta delicada cabeça não amarela,
esta pedra de carne que soluça.
Areia, areia, teu clamor é meu.
Por minha sombra não existes como seio,
não finjas que as velas e que a brisa,
que um aquilão, um vento furibundo
vai empurrar teu sorriso até à espuma,
ao sangue roubando os seus navios.
Amor, amor, detém teus pés impuros.
Vicente Aleixandre, Antologia de Vicente Aleixandre, Selecção, tradução e notas de José Bento, Editorial Inova, 1977
Princípio
Juan Rulfo, Pedro Páramo, Rui Lagartinho e Sofia Castro Rodrigues (trad.), Cavalo de Ferro, 2007.
terça-feira, 1 de junho de 2010
Segunda-feira, quarta-feira e sexta-feira
Eu fui.
Mas não sou.
Eu era...
(Oh fauce maravilhosa
a do cipreste e sua sombra!
Ângulo de lua cheia.
Ângulo de lua sozinha.)
Eu fui...
A lua estava a brincar
ao dizer que era uma rosa
(Com uma capa de vento
meu amor jogou-se às ondas.)
Mas não sou...
(Junto à vidraça partida
cozo minha roupa lírica.)
In the shadow of the Patriarch
I.
Many years later, in the course of writing his memoirs, Gabriel García Márquez was to remember that distant afternoon in Aracataca, in Colombia, when his grandfather set a dictionary in his lap and said, "Not only does this book know everything, it’s the only one that’s never wrong." The boy asked, "How many words are in it?" "All of them," his grandfather replied.
A lua surge
perdem-se os sinos
e aparecem as sendas
impenetráveis.
Quando sai a lua,
o mar cobre a terra
e o coração sente-se
ilha no infinito.
Ninguém come laranjas
sob a lua cheia.
É preciso comer
fruta verde e gelada.
Quando sai a lua
de cem rostos iguais,
a moeda de prata
soluça na algibeira.
Federico García Lorca, in Canções de Lua, Obra Poética, José Bento (trad.), Relógio d'Água, 2007.
Baco
A figueira estende-me nos seus braços.
Como uma pantera, sua sombra,
espreita minha lírica sombra.
A lua conta os cães.
Engana-se e começa de novo.
Ontem, amanhã, negro e verde,
rondas meu cerco de loureiros.
Quem te amaria como eu
se mudasses o meu coração?
...E a figueira grita-me e avança
terrível e multiplicada.
Federico García Lorca, in Três Retratos com Sombra, Obra Poética, José Bento (trad.), Relógio d'Água, 2007