domingo, 30 de junho de 2013


Notas contra notas diárias



Às vezes penso que nunca há-de ser mais do que estas notas aceleradas, desconexas. Post-its que talvez venham a compor a minha cara, se coleccionados todos, pacientemente. Mas só à superfície é que me posso dar ao luxo de coleccionar coisas. Na verdade, talvez venha a ficar comigo mais tempo o adaptador de corrente que comprei no aeroporto em Lisboa e que deixou de funcionar (e agora está na estante ao pé da plaquinha que o vizinho me trouxe de Lloret de Mar, thanx Horatio) do que tudo aquilo que escrevo como notas diárias. A ideia de que um rasto de palavras serve para ser conservado ou para conservar é um pensamento para mim abjecto, quase irrespirável. Tudo sobre este texto é afinal sobre ser livre, sobre não guardar, esse é o único diário que funciona, porque não é diacrónico e é disfuncional (como de resto as coisas que nele se tenta sem sorte registar, mas uma vez perdendo as pretensões à organização percebe-se que a coisa é mais fácil de manter). Ao contrário daquelas primeiras páginas de um diário que mantive quando aqui cheguei e que depois de as ter rasgado fui espalhando durante dias por diferentes caixotes de lixo por toda a cidade. Naquelas páginas não havia nada de secreto, nada que valesse a pena ser reencontrado (estava na verdade a tentar não pensar) e nem era isso o que me levou a destruí-lo, mas antes duas coisas, uma da ordem daquela história que se conta sobre Simónides, que no meio de um naufrágio, toda a gente para cá a e para lá, os marinheiros, os passageiros, desesperados a tentarem salvar os seus pertencentes e Simónides parado ao pé do mastro, então Simónides, não te mexes, e ele: que tudo o que lhe pertencia estava com ele, estava nele, aquilo que confio por hábito ao papel pertence primeiro à minha memória, à grande pressão dos meus pensamentos, de certa forma passa muito tempo comigo, mas sei que estas coisas se perdem, há dias de que não me recordo, dias que não me dizem nada, mas escrever força o padrão a aparecer, força a escavar, torna-se uma maneira de viver (não uma lente sobre que ver a vida). Nesse sentido suspeito que só falsamente sou um escritor, ou de outro modo, que só o sou daquela maneira em que o são aquele tipo de poetas que estão primeiro comprometidos com o que podem guardar em si para mais tarde dizer, porque o carregaram tanto tempo que já não se podem livrar disso ou porque sabem que é uma coisa com um instante só e é só aquele e por isso é preciso escrevê-lo. Escrever é uma maneira de ser, não há uma distinção entre as duas coisas, e o ser pertence também à fala, cujo primeiro motivo seja talvez conversa, pertence ao que dizemos aos outros (uma parte de nós é sempre interpretação, o território alheio, um espaço que depois para nós é inconsciente, um espaço onde existimos não existindo para nós próprios, mas sendo o que somos no ponto de vista de um outro, tudo o que somos) e pertence ao nosso discurso interior, a essa torrente em que nos fechamos, em que pensamos ser nós próprios e às vezes até mesmo estar a salvo (impertinência tolinha). Mas escrever não é criar o outro (talvez só uma maneira de lá chegar e até existem outras, igualmente interessantes) e não há para mim uma distinção propriamente entre escrever e falar, entre escrever e gritar ou murmurar, ou se há é artificial, a força do que temos de dizer não depende da forma escrita ou falada. E a mim convém-me uma ideia de sopro (que o haja no que escrevo enquanto o pio não for cortado), essa ideia de que as palavras são em primeiro lugar coisas orgânicas, vivas, com uma vida que nos escapa (é também por isso que não posso aceitar que haja nos aedos gregos qualquer coisa de subdesenvolvido, de primitivo, só porque deles sabemos pouco, porque nunca escreveram nada, o meu ofício de escritor não é o que a minha mão escreve, é o meu ofício, tudo o que sou mesmo para lá do acto de escrever, mesmo que para aí convirja, que seja essa a sua expressão, mas o escritor que sou é o que é sempre e não só o que se senta para escrever, tem estado comigo constantemente, todos estes anos, é uma coisa mais fluida e mais orgânica do que um hábito, tudo o que faço e tudo o que sou converge para esse acto, mas esse acto é expressão, é menos mecânico do que só a mão que assina o papel, a mão que assina o papel não chega, é preciso o corpo todo e mesmo às vezes o corpo todo não chega).
O outro motivo porque me agrada a ideia de destruir notas diárias não tem nada que ver com uma ideia de apagar o tempo, de recomeçar outra vez, não é uma coisa de Penélope. Antes a ideia – ou assim gosto de pensar, que há nisto alguma razão e ela é ética, mas desconfio que pode muito bem não haver nenhuma – de que não devemos ser avaros com as coisas que vivemos, que quando o barco se afundar (e afunda-se sempre, eu vivo com esta impressão de tragédia eminente, desastre a intervalos, falhanço sempre em potência, decepção constante) só assim saberemos o que verdadeiramente carregámos todo o tempo connosco, quais os restos e que restos de dia ao certo, quem está neste filme. E tudo isto acaba por encontrar, por criar a sua maneira de chegar ao texto, ao instante do texto, mas em alguns textos mais do que noutros e isto é uma observação verdadeira. E se não há grande maneira de distinguir o afogado que vai ao fundo distraído e ocupado a reunir os seus pertences e o que vai a direito sem nada nos bolsos, pois que o resultado é sempre o mesmo, a verdade (dura e cruel para dar azo e uso a um gosto por adjectivação perfeitamente inútil, a verdade não é outra coisa, enquanto mentir é o que quisermos) é que o resultado é sempre o mesmo de qualquer maneira. A diferença vive nestes detalhes, nestas singularidades. E esse momento, podemos projectá-lo, existe, em que vemos as coisas mais agudamente, mais claramente, e são parcas e claras e talvez nos tenham acompanhado o tempo todo. Não manter um diário durante a maior parte do tempo, uma decisão para mim irregular, notas diárias, é a minha maneira de reduzir o ruído, como a criança que se senta à janela e tem o rádio no máximo e roda o botão à espera de ouvir minimamente, desconsiderado, incontrolável por baixo, o chilrear do pássaro, essa coisa desajeitada que a esforço atravessou os lugares e o inverno e enganou predadores para alardear um qualquer trinado mais ou menos vulgar, batido e repetido por outros, e monótono. Mas o que esse pássaro tem é o que ele é e está com ele e trabalhou nele até ao ponto do canto, o resto é pouco mais que contingente. E no entanto, isto não são coisas de concisão, estas coisas que trazemos connosco e que notas diárias apenas tornam mais evidentemente e pela mecânica de uma prática retórica talvez redundante. Não são coisas que estejam bem. Há nestas coisas uma quase fúria, uma espécie de potência que em dois ou três traços ténues chegam para ser o alicerce do que sou. Esses são também lugares magoados que sabemos que temos de proteger, mesmo contra a tentação de spend the facts of our lives like small change on strangers. Se nada ficar escrito quais sãos os factos da nossa vida (talvez seja também para isso que hajam os arquivos, os registos civis, as contabilidades de impostos, os ficheiros clínicos dos hospitais)? Não manter um diário porque também não sei se existem tais coisas como os factos da nossa vida. Ou manter um diário em que tudo seja mentira. Há traços estáveis, uma identidade, o lugar de onde viemos, para onde vamos, que trabalho temos, mas todas essas coisas continuam a avançar no tempo connosco, detioram-se, recompõem-se, trabalham connosco, contra nós, contra a nossa vontade, abandonam-nos, dão-nos uma alegria exultante e são a cara da nossa decepção, do mais amargo, um medo de falhar, uma inveja triste. Coleccioná-las é um inventário para descer. Expõe-nos à tentação, já em si natural, de somar e subtrair, de contar, de achar que podemos terminar numa ponta e acabar na outra. É possível, mas isso é chato como o raio. Electra acontece só naquela moldura de tempo, emerge só em meia dúzia de lugares em umas quantas frases, de resto pouco sabemos dela, exceptuando que adivinhamos que há também para ela a vida quotidiana, os lugares comuns, o prazer de café bebido em copos de papel, comer cerelac ao almoço se sozinha em casa, beber whisky da garrafa da mãe quando esta não estava, ou a cobiça pelo vestido azul na montra da rua principal. E todas estas coisas interessam, e é também desta maneira que me encontro contigo ou que me preparo para o que amo, para o que tenho a perder, na contingência. Escrever deve trazer afinal isso ao de cima, tudo o que escrevemos antes disso ajuda mas pode arder, é o ofício triste do retórico, ainda que conceda que para outros isto funcione, mas este texto na memória, esta música nas suas variações é da ordem dos textos não que se leem mas que acontecem, é aí que o diário se torna organicamente a memória e não já só o diário (v. Pavese) por isso é possível que as notas diárias sejam precisas, mas posso esbanjá-las porque não me pertencem, porque não me interessa forçá-las sobre os outros, ou talvez por isso me pertençam demasiado mas posso deixá-las ir porque por as ter escrito sei o que nelas há de constante e posso dá-las, destruí-las, afastá-las que não as posso perder.
Sei que há por baixo disto e no fundo mais escuro a rapariga com o farol da bicicleta partido os cortes nos joelhos a que aprendeu a crueldade que há nos outros e agora pode proteger-se, também a que sabe que não é sempre assim e pode virar a palma da mão aberta, que teme que lhe descubram os cadernos, que prefere deixar tudo acontecer até que tudo o que me é exterior me aconteça e essas são coisas poucas, é isso que as notas de cada dia preparam. Escrever não era sobre erguer um muro é ainda sobre o melhor método para o destruir. Calculando o peso disto Celan escreveu Was du aus Leichtem wobst/ trag ich dem Stein zu Ehren [Aquilo que tu teceste a partir de uma coisa leve/ eu uso em honra da pedra].

sábado, 29 de junho de 2013

edições bilingues, «este convite ao estrabismo mental»

partilha dedicada ao JP

É nisto que a edição bilingue, uma vez que me pedem para terminar com um ponto de vista sobre esta questão, me parece bastante contraditória com a própria existência da tradução. Nós temos dois olhos mas um olhar só. Que ele se fixe no erro ou naquilo que julgamos ser a verdade, este olhar organiza-se em torno de um relevo único que é preciso corrigir se a diferença entre as duas imagens retinianas se revela excessivo. Mesmo que conhecêssemos todas as línguas, no momento de ler, servir-nos-íamos de uma só — como vetor, para ser sucinto, do pensamento mental involuntário ou do sonho.

Porquê então este convite ao estrabismo mental, se a pluralidade de sentidos não pode manifestar-se senão do interior de um mesmo texto? A pretexto da confrontação, a publicação de uma versão-mãe em frente da outra surge antes como uma degeneração acusadora do corte entre as línguas, uma consolação simbólica da perda da autoridade, e uma compensação afinal facultativa, já que um leitor que não conhece a língua passe bem sem o original, e o que a conhece passa bem sem a tradução.

Dominique Grandmont. A Viagem de Traduzir. João Domingues & Maria de Jesus Cabral (trad). Edições Pedagogo (2013).

sexta-feira, 28 de junho de 2013

«Barbara» de Christian Petzold, 2012

Deceptions

'Of course I was drugged, and so heavily I did not regain consciousness until the next morning. I was horrified to discover that I had been ruined, and for some days I was inconsolable, and cried like a child to be killed or sent back to my aunt.'
-Mayhew, London Labour and the London Poor

Even so distant, I can taste the grief,
Bitter and sharp with stalks, he made you gulp.
The sun's occasional print, the brisk brief
Worry of wheels along the street outside
Where bridal London bows the other way,
And light, unanswerable and tall and wide,
Forbids the scar to heal, and drives
Shame out of hiding. All the unhurried day,
Your mind lay open like a drawer of knives.

Slums, years, have buried you. I would not dare
Console you if I could. What can be said,
Except that suffering is exact, but where
Desire takes charge, readings will grow erratic?
For you would hardly care
That you were less deceived, out on that bed,
Than he was, stumbling up the breathless stair
To burst into fulfillment's desolate attic.

Philip Larkin, The Less Deceived, Faber & Faber, 1955 (1st edn.).

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Best of



Pus a sacar um best of do Donovan, o Bob Dylan inglês, depois de ver um vídeo do Bob Dylan sentadinho ao lado do Donovan, e o Donovan a roer as unhas e a chupar um cigarro com um ar de foda-se-já-alguém-me-tirava-este-gajo-da-frente. A única música que conheço do Donovan é o Hurdy Gurdy Man, usada na banda sonora do Zodiac e que me lembra inevitavelmente do Marc Ruffalo a fazer de Bullit e de serial killers em San Francisco. Serial killers e música peace and love é uma combinação estranha, e daí talvez não.
Ontem à noite ainda estive a ler Almudena Guzmán. Ela publicou o primeiro livro com 17 anos. Não é um livro mau e a poeta que ela veio a ser já para ali andava em embrião, parece-me. Estar a ler Almudena Guzmán lembrou-me de uma das tardes em que fui a Cambridge ouvir o West e, à espera do autocarro de volta, estava a ler um poema do García Montero sobre uma montra de uma loja de móveis. Nesse poema ele fala de como todas as lojas de móveis contêm milhares de casas em potência, fala sobre comprar coisas a prestações, sobre a alegria de construir coisas em conjunto, uma felicidade classe média e suburbana. Não me lembro do resto do poema mas lembro-me que não acabava bem. Quando levantei os olhos em Parkside 16 e ainda antes de chegar o X5 vi que à minha frente havia um Family Law Practician. De repente há uma continuidade qualquer, completamente aleatória, completamente acidental, entre o que estamos a fazer e o que nos rodeia. Há qualquer coisa de agradável e obsceno nisto.
O poder mais misterioso que possuímos é o de criar um sentido, uma continuidade, uma ligação entre o que connosco está em trânsito e os lugares do nosso trânsito. Calada não tenho uma nacionalidade, não tenho uma língua, a ler não sou a mulher que escapou da linha de sentido anterior que corre entre a realidade e o que só existe dentro da minha cabeça. Essa linha de sentido anterior, interior, e a realidade contra, a soma dessas duas coisas, isso, é o que eu sou. É por isso que somos misteriosos, que há em nós qualquer coisa de inexplicável, de indizível, de perigoso, porque existimos mais violentamente nesse ponto inarticulado que está entre o que sabemos que somos e a realidade, a maneira como acontecemos, como somos afectados e afectamos o que nos rodeia e essas duas coisas se moldam, não existem uma sem a outra.
Jogadores de cricket, os prédios castanhos ao alto, qualquer coisa de decadentemente estival, de estância balnear nestas cidades de estudantes que fecham para o verão. E desaparecer no meio das pessoas. Ressurgir três horas mais tarde numa cidade mais adiante com uma impressão de avião a despenhar-se, é só o autocarro a entrar na cidade, a estranheza de uma cidade que chega no meio da noite. Um regresso resguardado, clandestino, de rapariga que continuamente puxa a saia para baixo do joelho, sabendo que ao andar ela vai tornar a subir e que bocado te tiram se te virem as pernas, nenhum. Que estas são as coisas que possuo, este corpo e esta meia dúzia de gestos, de restos de cigarros e papéis nos bolsos, estes lugares, inscrições em tabuinhas. Lugares nefastos, fome, cansaço, unhas que crescem e se partem, saltos altos que se partem num passo em falso, uma pressa resoluta de chegar. Há-de haver uma altura em que terei de olhar para trás e para a frente e articular todas estas coisas, fazer delas sentido, como instrumentos velhos descobertos em escavações arqueológicas podem vir a fazer música muitos séculos depois e imagens em vasos estilhaçados em cacos podem ser restauradas, reunidas, muito tempo depois de separadas. Só que nós não sabemos o quanto temos de aldrabar o padrão para dele tirar música.
Um dia estás deitado na tua cama, estás a caminho dos trinta e vês-te com sessenta e pensas que daí a trinta hás-de estar morto e a maior parte das coisas que te parecem agora importantes são reconduzidas a outra escala. E sabes de quantas coisas precisas de abdicar para seres capaz de sobreviver a ti próprio, quanto é preciso escavar para preservar o núcleo intacto. Começas a contar isto e aquilo e também aquilo, nada disto importa. E o pulso começa a acelerar, há para aí um histérico aí bem dentro que diz Mas que caralho, que núcleo intacto, eu sei que não quero deixar ir de nada, tudo o que é meu de viver sobre perceber quanto espaço há e quanto tempo e mais para debaixo ainda do amplexo curto dos braços, de toda a merda que diariamente escavo como um escravo e às vezes senhor destas coisas, destes poderes curtos, curtos em toda a parte para onde me vire e para onde olhe e belos porque destruição como eu. Porque haveria eu de ceder, não é ceder, é deitar fora (conceder é outra coisa) um palmo que fosse do que quero viver. E assim a suar, com um sabor de chumbo na boca, levantar-me com os olhos dilatados, tentar chegar ao fundo disto e não me parece organizado.
É que nunca me demonstraram com aguda contundência, o sentido que possa haver em cortar razoavelmente no que tenho para viver no que quero viver para quem e para quê ao certo?, e não estou a falar de um trabalho, de lojas de móveis, do que temos de fazer para sobreviver, estou a falar de estar vivo ao certo, desta meia dúzia de poemas, de atravessar de uma cidade à outra com uma moeda na boca, a corda deposta ao pescoço, a chave do cadeado num bolso, da música com os headphones grandes, do que ainda trazes para me contar, este e aquele poema, varandas debaixo do calor em Granada, o próximo livro, o acelerar do passo, já que começaste agora
continua por favor
para a frente é que é Lis

Nem que seja o boi


quarta-feira, 26 de junho de 2013

súbito

até cada objecto se encher de luz e ser apanhado
por todos os lados hábeis, e ser ímpar,
ser escolhido,
e lampejando do ar à volta,
na ordem do mundo aquela fracção real dos dedos juntos
como para escrever cada palavra:
pegar ao alto numa coisa em estado de milagre: seja:
um copo de água,
tudo pronto para que a luz estremeça:
o terror da beleza, isso, o terror da beleza delicadíssima
tão súbito e implacável na vida administrativa

Herberto Helder, Servidões, Assírio & Alvim, 2013

segunda-feira, 24 de junho de 2013

não é um

a noite que no corpo eu tanto trouxe, setembro, o estio,
pálpebras seladas, unhas, e o sangue por baixo e em cima a faca
com que se talha a mão e a frase um pouco longa sangra,
e consta que no verso e reverso da língua se está mais vivo,
assim o súbito nos abra,
nos puxe, digo eu, ao sorvedouros do sono,
e seus estados e obras,
eu que sou isento, digo, que me devore um buraco ou fora ou dentro,
ou galáctico, ou uma pontada no coração tão de repente,
se alguém se vai embora não sei de onde para onde,
se se murmura: que toda a gente morre de si: ou agora ou
um pouco mais tarde, o que está certo
como qualquer mistério:
água quebrando os dedos até às pontas quando se escreve
de uma ponta à outra sobre as riscas do papel cantante,
mais coisa menos coisa, pequena coisa, ou: riacho frio, sorve-o a areia
e acaba ali, como esta curta ária aqui tão perto do comêço
de seu esperançoso esperanto tanto quanto
já sabe alguém que aqui se capitula,
e abre este capítulo:
que tudo acaba: canção, talento, alento, papel, esfereográfica,
alguma coisa movida a estrangeiro longíquo,
coisa fora do sistema, e mete medo,
e não é a beleza,
não é um rosto que estremeça junto ao nosso rosto,
e o pretexto é sempre este:
orvalho

Herberto Helder, Servidões, Assírio & Alvim, 2013

Uma amiga mo traficou para terras de, muito muito obrigada obrigada.

terça-feira, 18 de junho de 2013

Diante das vinhas

Diante  das vinhas abrasadas pelo inverno, penso no medo e na luz (uma única substância dentro dos meus olhos),

penso na chuva e nas distâncias atravessadas pela ira.

Antonio Gamoneda, Oração Fria, João Moita (sel., trad. e posf.), Assírio & Alvim, 2013.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

«Dekalog V» de Krysztof Kieslowski, 1990


Fileiras de prisioneiros

Sucediam-se fileiras de prisioneiros; homens carregados de silêncio e cobertores. Daquele lado do Bernesga eram contemplados com amizade e medo. Uma mulher, cansada e bela, abeirava-se com uma cestinha de laranjas, a última laranja queimava-lhe as mãos: sempre havia mais presos que laranjas.

Passavam debaixo das minhas varandas e eu baixava-me até aos ferros cujo frio não cessará no meu rosto. Em compridas fileiras eram levados às pontes e eles sentiam a humidade do rio antes de entrar na treva de San Marcos, nos tristes depósitos da minha cidade envergonhada.

Antonio GamonedaOração Fria, João Moita (sel., trad. e posf.), Assírio & Alvim, 2013.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

De «Note on method»

So writing involves some dashing back and forth between the darkening landscape where facticity is strewn and a windowless room cleared of everything. I do not know. It is the clearing that takes time. It is the clearing that is a mistery. 
Once cleared the room writes itself. I copy the names of everything left in it and note their activity. 
How does the clearing occur? Lukács says it begins with my intent to exercise everything that is not accessible to the immediate experience (Erlebbarkeit) of the self. Were this possible, it would seal the room on its own boundaries like a cosmos. Lukács is prescribing a room for aesthetic work; it would be a gesture of false consciousness to say academic writing can take place there. And yet, you know as well as I, thought finds itself in its room in its best moments -

locked inside its own pressures, fishing of facts of the landscape from notes or memory as well as it may - vibrating (as Mallarmé would say) with their disappearance.

Anne Carson, Economy of the Unlost, Princeton Paperbacks, 1999.

terça-feira, 11 de junho de 2013

fragmentos do Livro de Samuel

§
Sentia tudo aquilo com a língua, a língua era de súbito um sentido suplementar que aglutinava todos os restantes, os quais se retraíam para dar lugar exclusivamente àquele, com o qual as coisas em redor faziam corpo, como se também elas próprias fossem um sentido, e ele respirasse através do mar, das rochas, e as visse através umas das outras, entre si, na perspectiva de cada uma, e a sua sensorialidade assim se exacerbasse, via o mar visto pelas rochas, do pétreo ponto de vista das rochas, e as rochas como se fosse o mar, do ponto de vista líquido do mar. E não só via, mas ouvia e saboreava, e não só o mar e as rochas, mas todos os objectos em redor, as árvores, as casas, o farol, tudo isso absorvido pela língua, onde o sentido da paisagem como que ia e vinha dentro dela, à semelhança das marés, acompanhado nesse vaivém por um acréscimo de intensidade, uma luz que do interior de cada um dos objectos de súbito emanava e iluminava todos os restantes como a do farol, a que o farol lhe ia extrair ao fundo da memória para aluminar cada um dos seus gestos, e Samuel, sentindo o mar apunhalado, a ferida que nele a roda abria, caminhava ao longo das paredes, paredes únicas, ali, paredes cuja singularidade extravasava como tinta que delas ressumasse, ou água, água onde os próprios barcos se tivessem afundado, água de incêndio.

§
A língua era excitada pelo que ouvia, a língua ouvia, dessacralizava velozmente o que a excitava, fazia de janela, uma janela, a daquele quarto onde ele agora residia. A língua desligava-os e voltava-os a ligar, como que as recozia, sentia-se-lhes o sabor a ascender no paladar, um sabor quase visão, que lhe ascendia aos olhos, à chama que lhes corre ao rés do espírito.


Luís Miguel Nava. O Livro de Samuel (fragmentos). in relâmpago nº16 4|2005.

nos mercados abandonados

A minha amizade está sobre ti como uma mãe sobre o filho que sonha com facas.

Não te porei outra venda a não ser aquela que foi desfiada em redor do meu corpo, não te derramarei outro óleo a não ser aquele que descansa dentro dos meus olhos.

Certamente o silêncio é uma história horrível mas há um vigor que sucede ao desespero.

Recorda-te da paz nos mercados abandonados, recorda-te da doçura nos quartos onde o esquecimento se corrompia. Ninguém tinha razão nem esperança, que podíamos fazer.

Antonio Gamoneda, Oração Fria, João Moita (sel., trad. e posf.), Assírio & Alvim, 2013.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

ci affoga dentro proprio fino agli occhi

Uno non può sperare di scrivere qualcosa di serio cosí alla legera, come con una mano sola, svolazzando via fresco fresco. Non si può cavarsela cosí con poco. Uno, quando scrive una cosa che sia seria, ci casca dentro, ci affoga dentro proprio fino agli occhi, e se ha dei sentimenti molto forti che lo inquietano in cuore, se è molto felice o molto infelice per una qualunque ragione diciamo terrestre, che non c'entra per niente con la cosa che sta scrivendo, allora, se quanto scrive è valido e degno di vita, ogni altri sentimento s'addormenta in lui. Lui no può sperare di sebarsi intatta e fresca la sua cara felicità, o la sua cara infelicità, tutto s'allontana e svanisce ed è solo con la sua pagina, nessuna felicità e nessuna infelicità può sussistere in lui che non sia strettamente legata a questa sua pagina, non possiede altro e non appartiene ad altri e se non gli succede così, allora è segno che la sua pagina non vale nulla.

Natalia Ginzburg, 'Il Mio Mestiere', Le Piccole Virtú, Einaudi, 2012 (1ª edição 1962).

terça-feira, 4 de junho de 2013

A fonte da arte

Homenageio a tua primavera em flor
alma precocemente iluminada
que pões a salvação no mais profundo risco
o silêncio dos olhos sobranceiros
na predestinação da profecia
suavidade um dia em minha morte
com o olhar imerso na tristeza
Povoavam pássaros a noite
tudo era pensamento para mim
e as palavras só vinham depois
Ó meu país longínquo donde venho
nessa nuvem de vida sobre a minha morte
Na manhã combalida do domingo
na primavera dolorosa dos teus passos ruy
ao tempo de uma má reputação
o metro tem a voz de um cordeiro triste
É isso apenas isso e o demais são
a morte e a nascença dos contrários a
fórmula da ternura e do sossego
abismo de ameaças nos seus olhos
regiões insondáveis e inacessíveis
pequeníssimas flores da memória
relâmpago dourado do olhar
os cheiros acres das redondas cavidades
a tua boca de ouro de onde voam as palavras
animadas figuras do meu sonho
os peixes negros e dourados das recordações
olhos brilhantes de animais desconhecidos
coisas que por pensá-las eu as sinto
Os dias diminuem é outono
alguém alguma coisa me virá desse distante bosque
O que dirão de mim o castanheiro
os rostos múltiplos trazidos pela tarde num momento
a verde zebra que nos campos vibra ou
papoila rubra que no céu me sobra?
Mas amo muito mais amo o bem e o mal
os campos no outono moribundo
no meio do inverno a casa acolhedora
estranha companheira dos meus dias
demónio de demência e desespero
ao longo do caminho no outono
O receio da morte é a fonte da arte
Eu amo a embriaguez vasta dos espaços
a canção inquieta do amor as
alturas coloridas do outono
Não se pode dizer muito melhor
na monstruosa veemência dos sentidos
e sinto-me perdido de tristeza
entre esses longos nomes das mulheres casadas
Houveram morte às minhas mãos as cartas
os aviões nos distribuem por países
saem de um centro partem nas mais várias direcções
farejam na distância os seus destinos
retalham-nos o espaço em sulcos divisórios
Por onde corre agora a fonte das suaves raparigas?
Ficou na casa o meu lugar vazio
levo a desgraça como um braço ao peito
e árvores ao vento neste dia
e sombra ao sol deste meu dia
Queimam as folhas no parque del'oeste
o tecto é baixo o sol está quase a pôr-se
tenho nas minhas mãos três notas do país amado
Esta manhã falavam-me de málaga
e de súbito no meio desta névoa
abriu-se o céu de há anos no verão
Éramos tão jovens nesse tempo
que não sabíamos sequer que nos amávamos assim
e discutimos junto ao porto e regressámos separados
ao hostal onde estávamos aboletados
E tu de olhos no chão reflectias o vulto entre as águas
e não havia os filhos éramos os dois apenas
mas enfim foi há pouco posto que inda hoje brilha
a moeda nesse ano posta em circulação
e que acabo de ter nas minhas mãos no bar
Não me farto de contemplar
o braço esquerdo e a perna direita
que cortados de mim não me pertencem mais
Tu foste sempre reino sobre ti
e o meu desejo é seguir do alto o tejo
Que depressa se esfuma uma cidade no ar
não são sequer as nuvens nem o vasto espaço
basta um golpe de asa que roçando limpe
o pára-brisas próximo horizonte
Pensar é estar alguma coisa a mais
pensar é o que sobra da respiração
pensar é o que não nos leva às coisas
pensando se antecipa a própria morte
O receio da morte é a fonte da arte

Madrid, 24/V/1977


Ruy Belo, Despeço-me da Terra da Alegria, Editorial Presença, 1978

domingo, 2 de junho de 2013

Um Mitternacht


Um Mitternacht
Hab' ich gewacht
Und aufgeblickt zum Himmel;
Kein Stern vom Sterngewimmel
Hat mir gelacht
Um Mitternacht.

Um Mitternacht
Hab' ich gedacht
Hinaus in dunkle Schranken.
Es hat kein Lichtgedanken
Mir Trost gebracht
Um Mitternacht.

Um Mitternacht
Nahm ich in Acht
Die Schläge meines Herzens;
Ein einz'ger Puls des Schmerzens
War angefacht
Um Mitternacht.

Um Mitternacht
Kämpft' ich die Schlacht,
O Menschheit, deiner Leiden;
Nicht konnt' ich sie entscheiden
Mit meiner Macht
Um Mitternacht.

Um Mitternacht
Hab' ich die Macht
In deine Hand gegeben!
Herr, über Tod und Leben,
Du hältst die Wacht
Um Mitternacht!

Friedrich Rückert